O presidente Lula sancionou, ontem (13), o projeto de lei para restringir a utilização de celulares em escolas brasileiras. O texto permite o uso de dispositivos para fins pedagógicos, a fim de promover a acessibilidade para alunos com deficiência e em situações excepcionais, como em casos de violência nas unidades de ensino. Além disso, os estudantes poderão utilizar os aparelhos nos horários de entrada e saída, mas fica vedado o uso em sala de aula e no horário de recreio.
A medida do governo acompanha o debate sobre os efeitos do uso de telas em crianças e adolescentes. Recentemente publicado, o artigo “Crianças/adolescentes e a internet: ameaças ao desenvolvimento cognitivo e socioemocional”, publicado pelo professor do departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (GSI/UFF), Elton Hiroshi Matsushima, aponta que a exposição sem controle aos aplicativos de celulares gera efeitos nocivos ao desenvolvimento de crianças e adolescentes e suas capacidades de autocontrole são insuficientes para combater o potencial viciante destes aplicativos. O uso diário, muitas vezes sem controle sobre o tempo de utilização, pode, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), resultar em dependência digital.
Neste UFF Responde, convidamos o docente para debater os impactos da nova legislação na formação dos jovens.
Quais são os impactos mais conhecidos do uso excessivo de telas em crianças e adolescentes?
Há uma série de evidências científicas que indicam que o vício em internet, diretamente associado ao uso excessivo de telas (TV, computador, videogame e celulares) altera a conectividade funcional no cérebro e as funções cognitivas e socioemocionais. Os estudos sustentam a ideia de que as questões psicológicas são causadas pela reorganização funcional de amplas redes cerebrais.
Estudos científicos encontraram diversas alterações no cérebro de quem faz uso excessivo de telas, como, por exemplo: no cíngulo posterior, cuja atividade está relacionada ao controle da atenção; na ínsula anterior, cuja atividade se relaciona com processos motivacionais e cognitivos; no caudado, cuja atividade se relaciona com, entre outros processos, o controle emocional; e nos lobos parietais, induzindo prejuízos nas tarefas visuoespaciais, na memória de trabalho e controle da atenção. Estes são somente alguns dos achados das pesquisas.
Nos jogos online, por exemplo, as regiões cerebrais ligadas à impulsividade e ao sistema de recompensa são fortemente ativadas, devido ao seus sistemas de gratificação instantânea. Além disso, a atividade do córtex pré-frontal dorsolateral – sistema de controle executivo – é suprimida, o que dificulta o controle do desejo de continuar jogando. Portanto, esta cadeia de ativação causa comportamentos impulsivos, aumento do tempo de jogo, falta de controle inibitório que, por sua vez, induz o uso excessivo da internet e prejuízos pessoais, como a ansiedade.
Durante a infância até o final da adolescência, muitas funções cerebrais estão em desenvolvimento. Assim, a exposição precoce e excessiva a tecnologias baseadas em algoritmos de captura da atenção ou que entregam gratificação instantânea pode prejudicar esse desenvolvimento. Os algoritmos das redes sociais e os roteiros de recompensas diárias de jogos online dificultam o desenvolvimento de funções de postergação da gratificação e do manejo da frustração, habilidades essenciais para o comportamento orientado e objetivos a longo prazo.
Como o uso de dispositivos digitais influencia habilidades como atenção e memória?
Muitos dos sistemas destes aparelhos operam com esquemas de gratificação instantânea, reforçando a permanência da conexão nestes aparelhos por longos períodos de tempo. Não há postergação da recompensa. É possível maratonar toda uma temporada de uma série no streaming. A timeline na rede social oferece conteúdo infinito que atrai e prende nossa atenção. O sistema de mensagens é instantâneo, proporcionando a sensação de permanente conexão com as pessoas. Os jogos, por sua vez, apresentam pequenas tarefas ou rodadas curtas, recompensando a cada uma completada, e costumam oferecer recompensas ainda maiores para maior perseverança e tempo despendido.
Esses dispositivos competem pela nossa atenção e tempo, sempre oferecendo entretenimento dentro de nossos interesses e motivações. Sair desse ciclo vicioso dopaminérgico, ou seja, de gratificação instantânea, requer processos cognitivos e socioemocionais bem desenvolvidos, como a capacidade de inibir desejos e anseios, postergar a gratificação, planejar a longo prazo, ou até ficar entediado para poder ser criativo. Crianças e adolescentes ainda estão desenvolvendo estes processos, e, se estão com sua atenção sequestrada por estas tecnologias, não terão oportunidades para desenvolvê-los plenamente.
A mera presença de um celular na mesa, mesmo que desligado, já prejudica a atenção de jovens que tentam realizar duas atividades ao mesmo tempo, e até na capacidade de manter conteúdos na memória recente. A presença do celular também afeta as relações sociais, prejudicando a conexão, intimidade e qualidade de uma conversa, além de diminuir a empatia nas interações sociais.
Como funcionam os algoritmos das plataformas digitais e qual sua relação com o vício em telas?
A monetização das redes sociais é baseada na entrega de publicidade a seu público-alvo. O valor de uma plataforma de rede social é derivado das garantias de perfil do usuário e do tempo que ele gasta nela. Estas métricas de tempo são, portanto, dependentes do usuário permanecer navegando na rede social. Os algoritmos, responsáveis por determinar o que vai aparecer na timeline do usuário na rolagem (scrolling) da tela do celular, utilizam informações sobre o seu histórico de interações com conteúdos para identificar o que captura sua atenção, o que o faz “engajar”. Funciona como um sistema permanente de recompensas, entregando conteúdo interessante, prazeroso, criando um ciclo de gratificação imediata. Essa gratificação é entregue a cada rolagem da timeline, ativa nossos sistemas cerebrais de recompensa, reforçando este comportamento de rolar indefinidamente, o que interfere na possibilidade de outros conteúdos acessarem o fluxo da nossa experiência.
Nos jogos online, acontece algo semelhante. Pequenas tarefas e rodadas curtas e repetitivas, com recompensas ao término de cada uma, induzem o jogador a permanecer no jogo, principalmente quando, para realmente avançar no jogo, são necessárias algumas recompensas raras ou que dependem de acúmulo. O jogador é recompensado por ficar mais tempo jogando, mas essas recompensas produzem incrementos pequenos para o avanço no jogo.
Os canais de streaming trazem novidades e sugestões baseadas no histórico de visualizações para capturar a atenção do telespectador, além de disponibilizarem temporadas inteiras para maratonar em um esquema de gratificação constante, inclusive pulando os tediosos créditos e iniciando o próximo episódio automaticamente. Evita-se até as aberturas repetitivas para não frustrar nossa atenção e o desejo por novidades.
Quais são os sinais de que uma criança pode estar desenvolvendo uma dependência digital?
O critério da Organização Mundial da Saúde (1964) para vício ou adição é a presença de dependência, que é o uso continuado de algo para relaxamento, conforto ou estimulação, acompanhado de ânsia ou desejos de continuar este uso. Esse conceito pode ser aplicado a questões comportamentais, como no jogo patológico, que é o vício em jogos de apostas, embora ainda não haja a classificação da dependência digital como um vício comportamental.
Os estudos têm identificado certos sinais e sintomas como indicadores da dependência digital. Entre eles, destacam-se: a facilidade em perder a noção do tempo, síndrome de abstinência, distúrbios do sono, negligência com deveres e responsabilidades, prejuízos no desempenho acadêmico, mentira sobre suas atividades online, realizar as atividades online escondido dos pais, isolamento social, preocupações com este uso da internet, e tentativas mal sucedidas em diminuir este uso.
Outro estudo relaciona o vício em internet com sintomas de ansiedade, depressão, agressividade, e com problemas nos relacionamentos sociais, na atenção e no raciocínio. Embora ainda não haja um trabalho coordenado para determinar estes sinais e sintomas, é importante incluir também a irritabilidade e desregulação emocional, a dificuldade em ficar “sem fazer nada” ou a necessidade de ficar sempre ocupado com alguma atividade, além de prejuízos na atenção concentrada em atividades mais complexas, como a leitura e a resolução de problemas.
Quais estratégias você recomenda para que as famílias gerenciem melhor o uso de telas no dia a dia?
Conscientizar os filhos é o primeiro passo para uma adesão ao uso consciente destas tecnologias. E assim eles entendem que não é uma forma de coerção, autoritária e injustificada dos pais sobre eles, mas que é uma ação de cuidado e proteção. Obviamente, isso passa pelo exemplo que os pais devem dar. Não adianta falar dos malefícios do uso excessivo do celular e depois os pais, na frente dos filhos, perderem horas no celular.
O controle do tempo de telas e dos conteúdos é imprescindível. Então, em primeiro lugar, reduzir o tempo de telas ao máximo adequado para a idade. Quero dizer que os pais devem estipular um tempo máximo que a criança/adolescente passa na frente de telas (TV, computador, celular/tablet, videogames). A Sociedade Brasileira de Pediatria já divulgou os tempos máximos aceitáveis para diferentes faixas etárias. Mas ainda não temos parâmetros relacionados aos conteúdos ou aos tipos de aplicativos mais ou menos perniciosos ao desenvolvimento cognitivo e socioemocional.
Os jogos devem ser controlados por tempo, ou seja, limitando o tempo que a criança ou adolescente pode usar de telas, independente do que esteja fazendo. Redes sociais não devem ser permitidas para crianças e adolescentes com menos de 16 anos. E mesmo depois deve haver supervisão e controle do tempo, que deve estar incluído no tempo máximo de telas.
Sistemas de mensagens instantâneas, e-mails e fóruns devem ser supervisionados, sempre com o consentimento e conhecimento das crianças e adolescentes. A quebra da confiança de uma espiada no celular pode dificultar as relações entre pais e filhos. Para isso, deve-se conversar sobre os riscos de potenciais interações com pessoas mal intencionadas, predadores sexuais, entre outros riscos. Fortalecer as capacidades críticas das crianças e adolescentes em relação a diferentes assuntos também contribui para a segurança na internet.
Entendo que muitas famílias não têm como manter um controle tão próximo do que seus filhos fazem, principalmente quando ambos os pais trabalham fora. Neste caso, o uso de aplicativos que controlem ao menos os celulares é um recurso que pode ajudar os pais. Há aplicativos que desligam o celular depois do tempo máximo estabelecido pelos pais se esgotar e somente os pais têm acesso para liberar o celular. O celular continua podendo receber ligações telefônicas para os pais entrarem em contato com os filhos, mas as crianças e adolescentes não podem mais usar os demais aplicativos após o esgotamento do tempo máximo permitido.
Foi sancionado o projeto que limita o uso de celulares nas escolas. De que maneira a regulamentação do uso de celulares pode impactar o comportamento dos alunos dentro e fora das salas de aula?
Primeiramente, é uma iniciativa louvável e que contribui para a proteção ao desenvolvimento cognitivo e socioemocional de crianças e adolescentes. Além disso, serve ao propósito de dar visibilidade ao problema através da discussão na sociedade que a aprovação do projeto suscitou. Os professores de todas as escolas, em todos os segmentos, devem estar agradecidos por não serem mais eles os que terão de impor as limitações ao uso destes aparelhos na escola.
Segundo, o ambiente escolar poderá novamente se tornar um espaço de socialização mais saudável, em que as crianças e adolescentes terão sua atenção e tempo para se dedicarem ao estudo durante as aulas, e ao brincar e às relações sociais, nos intervalos e recreios. O uso livre e sem supervisão dos celulares nas escolas estava transformando os intervalos e recreios em um tempo de isolamento social, em que cada um tinha sua atenção capturada pelo aparelho, impedindo a brincadeira, o jogo, e a interação com o outro. E na sala de aula, o celular é um rival do aprendizado, dos conteúdos fundamentais para a formação de nossas crianças e adolescentes, capturando a atenção, como vimos nos estudos empíricos, mesmo quando dentro da mochila.
Como os professores e gestores escolares podem se preparar para lidar com a possível regulamentação nacional sobre o uso de celulares nas escolas?
Penso que instaurar desde o primeiro dia de aula, instruindo inspetores, professores e restante da equipe a manterem-se vigilantes para detectar o uso do celular. Imediatamente, devem ou recolher à direção o aparelho e somente devolver ao final do turno, ou supervisionar o desligamento do aparelho e subsequente guarda deste na mochila. A nova regra deve ser publicizada e estar visível em diversos ambientes da escola.
Outra ação desejável é a construção de alguma atividade, seja de pesquisa, em que os alunos busquem investigar as consequências do uso excessivo e sem controle dos celulares, ou ainda como funcionam os algoritmos que regem as redes sociais e quais os malefícios que a exposição excessiva a sistemas baseados nestes algoritmos causam; seja de rodas de conversa em que se discuta a partir de relatos como o tempo e a atenção se modificaram ao ser introduzidos os celulares nas vidas das crianças e adolescentes, na direção de criar conscientização destas consequências a partir das próprias experiências delas.
O mais importante é não ser apenas uma atitude repressiva e de proibição injustificada. As crianças e adolescentes devem compreender quais as motivações para esta proteção com relação ao uso indiscriminado do celular.
Qual é o papel das políticas públicas no controle do uso excessivo de dispositivos digitais?
O papel é limitado, uma vez que a adesão a estas medidas são, no final, individuais. Mas a criação do projeto de lei é o primeiro passo. O próximo passo é instituir as políticas de conscientização da população sobre os riscos ao desenvolvimento cognitivo e socioemocional das crianças e adolescentes (e até para adultos) do uso excessivo dos celulares, principalmente os aplicativos baseados em algoritmos de captura da atenção. Estas políticas são as que atingirão o ambiente mais importante para o controle do uso excessivo destes dispositivos, o lar. É a família que tem o principal papel neste controle, estabelecendo regras de uso, supervisão de conteúdos, controle do tempo e educação para o autocontrole e consciência sobre os potenciais malefícios.
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Elton Hiroshi Matsushima é professor titular do Departamento de Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenando o Laboratório de Estudos do Comportamento Humano e Animal (LECHA) e o Serviço de Avaliação Neuropsicológica (SeANp). Possui bacharelado em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/1999), é psicólogo pela UFRJ (2000) e doutor em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP/2003).