Foto: Mario Anzuoni/Reuters
No último domingo, Fernanda Torres entrou para a história ao conquistar o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme de Drama por sua interpretação em Ainda Estou Aqui. O longa, dirigido por Walter Salles, narra a trajetória de Eunice Paiva, uma mulher em busca de respostas sobre o desaparecimento de seu marido durante a ditadura militar brasileira. O marco consolida o talento da atriz e reacende discussões sobre políticas de incentivo à cultura nacional, embora o filme não tenha sido contemplado por mecanismos de fomento público.
A expectativa agora é de que o filme, representante oficial do Brasil no Oscar de 2025, conquiste novos prêmios ainda mais ambiciosos, incluindo o de Melhor Atriz para Fernanda Torres. “Não é só Fernanda Torres que ganha, são todas as atrizes brasileiras e latino-americanas, além disso, o cinema brasileiro também é iluminado para o cenário internacional. Isso é muito importante para mostrar a cultura produzida no Brasil, pois o olhar do mundo começa a prestar mais atenção no audiovisual brasileiro como um todo”, pontua Lia Bahia, professora e pesquisadora do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Perspectivas otimistas para o audiovisual brasileiro
O reconhecimento internacional marca o ressurgimento do cinema brasileiro, impulsionado por projetos que combinam narrativas locais com uma linguagem universal, exemplo disso são os recentes Marte Um (2022) e Motel Destino (2024), filmes premiados e ovacionados em cerimônias consagradas como o Festival de Cannes e o Festival Internacional de Cinema de Berlim.
Lia Bahia também acredita que o sucesso da obra pode alavancar outras produções nacionais. “Temos muitos títulos sendo feitos, como O Dia que Te Conheci, um longa do diretor André Novais. Além disso, temos produções de outros territórios que não são apenas Rio e São Paulo. O cinema pernambucano, mineiro e paraibano, por exemplo, estão narrando diversas histórias, com arquiteturas produtivas e estéticas variadas. Acho que Ainda Estou Aqui também pode ajudar os filmes brasileiros a serem valorizados tanto internacionalmente quanto dentro do próprio território nacional.”
O desenvolvimento da indústria audiovisual do país não apenas promove a cultura brasileira, mas também gera empregos, movimenta a economia e projeta a imagem do país positivamente no cenário internacional.
Políticas públicas fomentam a cultura no Brasil
Nas últimas décadas, políticas públicas de incentivo ao audiovisual no Brasil permitiram a ampliação e a diversificação da produção nacional. Instrumentos como a Lei do Audiovisual (1993) e o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA, 2006) criaram condições para que cineastas brasileiros produzissem obras capazes de dialogar com públicos globais.
A Lei do Audiovisual permite que empresas destinem parte do Imposto de Renda devido para financiar produções culturais, ampliando o orçamento de filmes e séries. Já o FSA, gerido pela Agência Nacional do Cinema (ANCINE), disponibiliza recursos para todas as etapas do processo audiovisual, desde o desenvolvimento até a distribuição.
Nos últimos anos, no entanto, o setor enfrentou desafios significativos. “Houve uma paralisia na cultura, nos últimos dois governos, marcada por uma tentativa de censura disfarçada de tecnicismo. Com ataques diretos à cultura, incluindo o desmonte institucional do Ministério da Cultura, transformado em uma secretaria especial. Esses ataques não só diminuíram recursos como também afetaram trabalhadores da cultura e artistas, em um esforço deliberado para desmantelar o setor”, destaca a professora.
Alguns desses mecanismos, porém, são pouco compreendidos pela sociedade e constantemente alvos de desinformação. A Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei 8.313/1991), conhecida como Lei Rouanet, permite que pessoas físicas e empresas destinem parte de seu imposto de renda para projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura. Diferentemente do que afirmam críticas recorrentes, não há repasse direto de recursos públicos para artistas ou produtores. No caso do filme de Walter Salles, o Ministério da Cultura confirmou que a produção não recebeu qualquer verba da Lei Rouanet. Financiado com recursos próprios e coproduzido internacionalmente com a França, a obra não seria elegível, já que a legislação não contempla produções com mais de 70 minutos (longas-metragens) desde 2007.
Outra política cultural frequentemente criticada é a cota de tela, que obriga os cinemas a exibirem uma porcentagem mínima de filmes brasileiros. Essa medida, assim como a Lei Rouanet, tem o objetivo de fortalecer a indústria nacional e garantir visibilidade à diversidade cultural do país. As narrativas equivocadas acabam dificultando a percepção do público sobre sua relevância para o fomento à cultura no Brasil.
Na percepção de Bahia, “esses mecanismos de incentivo desenvolvem a cultura no país, entendida como uma dimensão cidadã simbólica e econômica”. A docente acrescenta que “quase todos os países do mundo têm políticas de incentivo, seja de regulação, de financiamento ou os dois juntos, que é o ideal para desenvolver seus cinemas nacionais”.
Dirigido por Walter Salles, conhecido por Central do Brasil e Diários de Motocicleta, a produção foi amplamente elogiada por sua direção sensível, roteiro coeso e pela interpretação de Fernanda Torres, que trouxe complexidade e emoção a uma personagem marcada pela dor e pela resiliência. Com fotografia que explora o contraste entre luz e sombras, Ainda Estou Aqui reflete visualmente os dilemas éticos e emocionais que perpassam a narrativa.
Inspirado em acontecimentos reais e no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, memória, justiça e traumas coletivos oriundos do autoritarismo da Ditadura Militar são temas centrais, ao oferecer uma perspectiva que ressoa com o Brasil contemporâneo.
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Lia Bahia é professora e pesquisadora do curso de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF), com expertise em economia política do cinema e do audiovisual, especialmente nas políticas públicas voltadas para o setor. Atua como coordenadora do Grupo de Trabalho de Distribuição e Circulação do Fórum de Tiradentes e é autora do livro Discursos, políticas e ações: processos de industrialização do campo cinematográfico brasileiro. Com uma trajetória que inclui passagens pela ANCINE, RioFilme e Secretaria de Estado de Cultura, desenvolveu e implementou diversos programas de fomento, formação e difusão, como o Elipse – Programa de Fomento ao Curta-Metragem Universitário, o Programa Estímulo à Criação, Experimentação e Pesquisa Artística, e o Territórios Culturais Audiovisual.