Projeto da UFF selecionado em edital da CAPES discute assimetrias jurídicas na pandemia de COVID-19

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Pesquisa analisa o tratamento desigual nos pedidos de liberdade de diversos réus, considerando Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça

Em março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base nas posições públicas assumidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), expediu uma recomendação aos tribunais e magistrados para que adotassem medidas preventivas à propagação da COVID-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. A Recomendação 62 do CNJ considera que a manutenção do bem-estar das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde coletiva e que um cenário de contaminação em grande escala nos sistemas prisional e socioeducativo produz impactos significativos para a segurança de toda a população. A recomendação aponta como fatores relevantes para sua implementação o alto índice de transmissibilidade do novo coronavírus, além da necessidade de estabelecer procedimentos e regras para fins de prevenção à infecção e à propagação do vírus, especialmente em espaços de confinamento.

A instrução publicada pelo CNJ é o tema central do projeto de pesquisa intitulado “Assimetrias federativas em tempos de COVID-19: diagnósticos e impactos da Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça nos estados do Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul”, coordenado pelo professor Roberto Kant de Lima, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA-UFF). A pesquisa foi uma das três selecionadas, na Universidade Federal Fluminense (UFF), para participar do Programa de Desenvolvimento da Pós-Graduação (PDPG) - Impactos da Pandemia, iniciativa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pretende mapear e descrever as debilidades e assimetrias do poder judiciário brasileiro e das políticas criminais em diferentes unidades federativas, no contexto da COVID-19.

O coordenador da pesquisa aponta que a pandemia, especialmente em razão de seus altos índices de contágio, potencializou o risco de infecção pelo novo coronavírus para aquelas pessoas em privação de liberdade, já que, em geral, os presídios não têm condições de assegurar as medidas recomendadas e necessárias para evitar a transmissão e contaminação pelo vírus. “A partir da Recomendação 62, vários pedidos de liberdade provisória ou de conversão de cumprimento de pena foram apresentados ao juiz de cada processo, na intenção de assegurar ao preso interessado sua saúde e liberdade. Algumas vezes os pedidos foram concedidos; entretanto, não era possível identificar ao certo na leitura das peças os critérios explícitos e os elementos objetivos que levaram à decisão de soltura, e que deveriam ser aplicados em situações análogas e casos semelhantes”, expõe Kant.

O Poder Judiciário é primordial para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e precisa resgatar a sua credibilidade para fazer cumprir o seu papel na administração institucional de conflitos do país - Roberto Kant

Nesse contexto, o projeto pretende descrever e analisar como se deu o tratamento desigual na apreciação de pedidos de liberdade em razão da COVID-19 feitos por réus em casos de furto, roubo, tráfico e homicídio, nos municípios de Campo Grande, Porto Alegre e Rio de Janeiro, capitais dos estados de Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, no intervalo entre 2015 e 2022. “Nosso problema, então, pode ser assim desenhado: se os juízes têm o dever de tratar as partes com igualdade, como estabelece a Constituição da República, como é possível haver como resultado prático, por meio de sua atuação no processo, a aplicação da lei de forma particularizada, chegando-se a decisões opostas em casos similares, reforçando a desigualdade jurídica e implicando a sua atualização e o reforço dos já conhecidos traços hierarquizantes da cultura jurídica brasileira?”, questiona o pesquisador.

De acordo com Kant, pesquisas realizadas anteriormente apontaram que a política criminal brasileira, após a Constituição de 1988, é marcada pela coexistência de princípios opostos na justiça. “Um deles é mais reativo e repressivo; o outro visa instituir e/ou reforçar alguns direitos e garantias fundamentais aos acusados. Em outros termos, certos processos decisórios no Judiciário são tomados através de um impulso punitivo, e outros incorporam o ideário liberal, no sentido de assegurar direitos e garantias e reconhecer princípios como o da intervenção mínima em matéria penal. Isso acaba produzindo desigualdades jurídicas na aplicação da Recomendação 62 do CNJ”, explica o professor.

Para verificar a hipótese apresentada, Kant relata que o projeto pretende observar as concessões, ou não, de habeas corpus - medida jurídica utilizada para garantir a liberdade de um indivíduo. Também serão analisados os desdobramentos das audiências de custódia - ato em que o acusado, preso em flagrante, tem direito a ser ouvido por um juiz, que irá avaliar eventuais ilegalidades em sua prisão. A comparação da pesquisa será feita entre períodos anteriores, concomitantes e posteriores à pandemia. “Partiremos da realização de entrevistas informais para identificação e observação das práticas dos agentes do judiciário e demais envolvidos na administração da justiça criminal. As entrevistas permitirão analisar a relação entre como a decisão foi tomada e o cumprimento da Recomendação 62 do CNJ, bem como os seus usos nos processos de construção de verdade jurídica e judicial”. O pesquisador reitera que o foco nos habeas corpus e nas audiências de custódia demanda uma análise dos arquivos de processo e outros documentos judiciais. “Com isso, pretendemos pensar como esses documentos são produzidos e utilizados”.

Para Kant, há um notório descompasso verificado entre aquilo que os cidadãos desejam e o que a Justiça lhes oferece. “Isso está causando uma crise de legitimidade no Poder Judiciário. O próprio campo jurídico começou a se dar conta de que as respostas prontas e definitivas que o direito oferece para alguns problemas dinâmicos e cotidianos enfrentados pelo Judiciário não atendem às demandas diferenciadas da sociedade. Embora as ciências sociais não tenham, em geral, a premissa de propor respostas prontas ou padronizadas aos fenômenos coletivos, compreendemos que, para pensar em políticas públicas, reformas legislativas ou inovações operacionais de protocolos de ação é preciso conhecer melhor essas questões. E conhecer é intervir, transformar, tensionar e problematizar. O Poder Judiciário é primordial para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e precisa resgatar a sua credibilidade para fazer cumprir o seu papel na administração institucional de conflitos do país”, finaliza.

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