Cartas mostram o caminho: correspondências de Mário de Andrade versam sobre cultura e literatura brasileiras

Crédito da fotografia: 
Victor Knoll

As correspondências literárias são uma linha de pesquisa no campo acadêmico, constituindo material de relevância por serem fonte de conhecimento dos elementos “nebulosos” das obras literárias. Por isso, através das correspondências, é possível interpretar os escritos de autores renomados da literatura brasileira. O mesmo se aplica às cartas de Mário de Andrade. As correspondências do autor são importantes para pesquisadores e amantes da literatura que desejam conhecer suas obras e a cultura brasileira. Afinal, além de conter informações sobre as publicações de Mário de Andrade, as cartas também abordam a trajetória da nossa literatura.

De acordo com Matildes Demétrio dos Santos, docente da Universidade Federal Fluminense (UFF) e estudiosa no campo da literatura e vida social (com interesse pelas memórias e correspondências literárias), o autor não deixou cartas sem resposta e possuía correspondentes pelo Brasil inteiro, incluindo nomes como Manuel Bandeira, Anita Malfatti, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Henriqueta Lisboa. Na sua tese de doutorado, intitulada “Ao sol carta é farol: a correspondência de Mário de Andrade e outros missivistas”, Matildes reúne cartas de grandes autores estrangeiros e nacionais, organizadas em um percurso histórico-literário e cultural.

Para Mário, a marca de todo artista é o risco: buscar o novo e não estagnar no comodismo.

Como as correspondências de Mário de Andrade atravessam várias décadas, o autor “performatiza” diante de cada interlocutor, transformando-se em diversas versões de si mesmo. Nesse sentido, através das cartas, é possível observar um Mário de Andrade diferente a cada década. Ou seja, o Mário da década de 20, de 30, quando assumiu o cargo na Secretaria de Cultura do estado de São Paulo e o dos anos 40.  

O heróico entusiasta da cultura e literatura brasileiras

Nos anos 20, Mário de Andrade recorre a Manuel Bandeira no sentido de ter alguém com quem dialogar sobre a sua literatura. Bandeira torna-se mentor, enquanto Mário é discípulo. As trocas de cartas com Bandeira evidenciam “um Mário heróico, que lutava pela renovação da cultura, pela atualização da literatura brasileira e por torná-la uma entre todas as outras, mesmo com as singularidades da nossa literatura, porque nós sempre tivemos uma dependência em relação à literatura estrangeira”, ressalta Matildes. 

Mário empreende várias frentes de batalha e lança sua teoria sobre a arte poética; por exemplo, na poesia com "Paulicéia desvairada" (1922) e na prosa com "Amar, verbo intransitivo" (1927) e "Macunaíma" (1928). A partir do movimento modernista, ele busca pela identidade brasileira, tanto pelo viés popular como pelo acadêmico. Neste momento, o autor revela que está “sacrificando” sua obra em prol de algo maior e investe no experimentalismo e na renovação com as vanguardas europeias.

Na mesma época, Mário de Andrade troca correspondências com Anita Malfatti, em uma tentativa de impedir que a artista abandone sua trajetória na arte, em razão das críticas da Semana de Arte Moderna (1922). Para Mário, a marca de todo artista é o risco: buscar o novo e não estagnar no comodismo. Por isso, a exposição de Malfatti foi fundamental.

A partir de 1924, Mário de Andrade começa a se corresponder com Carlos Drummond de Andrade. O autor percebeu que Drummond era capaz de contribuir com o país e o fazer literário. Logo, ele mostra a Drummond como é necessário viver e ouvir o português falado pelo povo. Essa lição acaba levando-o a publicar poesia e a buscar Mário para começar sua literatura. Mário torna-se mestre, enquanto Drummond é aluno.

Funcionalismo público: o “suicídio” de Mário de Andrade

Em 1930, Mário de Andrade assumiu a Secretaria de Cultura do estado de São Paulo. Agora, o escritor não fala mais em “sacrifício”, mas em “suicídio”. Ele deixa de lado as leituras, as pesquisas e a escrita para investir toda sua energia na Secretaria de Cultura de São Paulo. 

No cargo, Mário colocou planejamentos em prática: investiu na criação de bibliotecas públicas e ambulantes, nos parques recreativos, na pesquisa local e em expedições para o interior do Brasil, com o objetivo de preservar monumentos. Este momento revela como Mário de Andrade está preocupado com a riqueza cultural do país e empenhado em preservá-la.  

Apesar do empenho de Mário de Andrade, essas ações desagradaram influentes da época, despertando inimizades para o autor, que foi demitido com a acusação de desvio de verbas. As correspondências com Murilo Miranda são essenciais porque abordam esta fase: tratam da questão do “ser funcionário público”, das dificuldades em torno do cargo e do “suicídio” do autor.  

Década de 40: o sofrimento e o fim de uma trajetória

Após ter sido deposto do funcionalismo público, Mário de Andrade mudou-se para o Rio de Janeiro, onde entrou em depressão e não se recuperou mais. O autor não se adaptou à vida na cidade: vivia triste, bebia em excesso e começou a acumular enfermidades. Além disso, a Segunda Guerra Mundial também influenciou em seu declínio. “Quando aconteceu a invasão de Paris, Mário de Andrade ficou desesperado. Ele bebeu por 24 horas. Tem uma carta em que ele fala sobre isso. Diz que só acordou no dia seguinte”, revela Matildes. 

A correspondência com Henriqueta Lisboa data desta época, quando Mário de Andrade estava mergulhado em sofrimento. O autor escolheu Henriqueta para ser sua confidente, justamente no momento em que ele mais precisava se recuperar.   

Mário de Andrade faleceu em 25 de fevereiro de 1945, aos 51 anos de idade. Apesar de ter tido uma trajetória com altos e baixos, o autor continuou ativo, escrevendo e empreendendo trabalhos de pesquisa para a construção da sua literatura. Sua última obra publicada foi “Remate de males” em 1930.

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Matildes Demetrio dos Santos é Pós-Doutora pela Université Sorbonne Nouvelle - Paris III / França (2014). Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Graduada em Letras: Português-Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em Letras: Português-Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi professora da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Desde 2002, é professora de Literatura Brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Caminhos da Literatura Brasileira" UFF/CNPq.

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