Estudo identifica as relações entre tipos de crimes, vítimas e localidades no Rio de Janeiro

Cartazes de protesto contra violência de gênero

Crédito da fotografia: 
Eduardo Anizelli (Folhapress)
Pesquisa da UFF mostra o panorama da criminalidade e suas vítimas na cidade do Rio de Janeiro e evidencia que mulheres negras e pardas são o grupo mais suscetível

Pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) analisaram as conexões entre os diferentes tipos de crimes cometidos na cidade do Rio de Janeiro, considerando o perfil das vítimas, o horário e os bairros em que aconteceram. Com auxílio de um método chamado “redes complexas”, o estudo revela que as mulheres sofrem 56,6% dos crimes e 71,7% dos casos de lesões contra vítimas no município. Já os homens aparecem frequentemente relacionados ao crime de lesão corporal culposa de trânsito.
  
No artigo “Criminalidade e espaço urbano: As redes de relação entre crime, vítimas e localização no Rio de Janeiro”, Fernanda Ventorim, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFF), e Vinicius Netto, professor do PPGAU-UFF, mostram que as relações entre os dados não acontecem de forma aleatória. Pelo contrário, são resultados de questões sociais presentes nas metrópoles brasileiras e apresentam “padrões de conexão entre certos tipos de crime, características das vítimas e a localização das ocorrências”. Esses achados foram publicados no último ano na Revista Brasileira de Gestão Urbana, um dos principais periódicos sobre urbanismo do país.

 

Construção da análise

 

O estudo avalia as características de vítimas e crimes a partir de um sistema chamado redes complexas, aplicado para gerar grafos — uma área da matemática que estuda a relação entre objetos de um conjunto. Esse método “permite explorar associações a partir das similaridades e frequências de conexões entre fatores e variáveis que compõem o problema da criminalidade urbana”, explicam os autores. Com ele, três agrupamentos são gerados: ocorrências similares de acordo com o perfil das vítimas; características dos tipos de crime registrados e diferentes localizações.

Para a elaboração da pesquisa, foram utilizados dados do Instituto de Segurança do Estado do Rio de Janeiro (ISP-RJ), extraídos dos registros de boletins de ocorrência criminal entre 2007 e 2018 na capital. A partir do total de denúncias encontradas, foi selecionada uma amostra de 5 mil ocorrências, escolhidas aleatoriamente para uma análise quantitativa. Em seguida, os autores utilizaram o algoritmo para agrupar as ocorrências criminais com características semelhantes. Apesar da quantidade de crimes relatados, cerca de 500 mil queixas no período de 12 anos, os pesquisadores destacam que pode haver uma subnotificação, já que muitas ocorrências não são devidamente catalogadas ou a denúncia não é realizada pela vítima.

Entre os diversos registros da base de dados, a pesquisa trabalhou sobretudo com crimes cometidos contra pessoas, de acordo com a classificação do ISP-RJ. Foram eles: crimes relacionados a lesões contra a vítima (lesão corporal dolosa, ameaça e estupro); crime associado às pessoas desaparecidas; crimes relacionados aos homicídios (homicídio doloso, tentativa de homicídio e morte por intervenção de agente do Estado, como resultado de operações policiais) e crime associado a acidentes de trânsito. Violações como furtos e roubos, apesar de frequentes e amplamente registrados na cidade, não foram considerados pela falta de detalhes sobre as vítimas, como identidade de gênero, idade e identificação racial, o que inviabiliza a aplicação do método.

 

Criminalidade e questões de gênero

 

Segundo a 4a edição do Mapa da Desigualdade, publicada pela Casa Fluminense em 2023, os registros de violência contra mulheres diminuíram em 19 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) de 2018 a 2021. A queda reflete a subnotificação de casos de violência durante a pandemia de covid-19 em razão do isolamento social. Apesar de não avaliar a variação da quantidade de casos de agressão contra as vítimas do sexo feminino — os dados do ISP-RJ registam apenas “sexo feminino” e “sexo masculino” —, o estudo demostra que mulheres são as principais vítimas de crimes violentos no município do Rio de Janeiro.

O artigo revela que as mulheres sofrem 56,6% do total de crimes na cidade, porcentagem superior à proporção desse grupo na população como um todo — 51,5% de acordo com o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 —, e 71,7% da média anual do total de casos de lesões contra vítimas na cidade durante o período analisado. Crimes de agressão são predominantes em nove dos 16 grupos criados a partir da amostra de ocorrências criminais e da aplicação do algoritmo de redes complexas. Além disso, 51,7% dessas violações tiveram como alvo mulheres negras ou pardas e 79,8% do total das vítimas possuíam entre 20 e 40 anos.

Com relação aos homens, o crime a que estão mais expostos é a lesão corporal culposa de trânsito, ocorrência que se destaca em 7 dos 16 grupos de ocorrências. Ainda, delitos contra a vida (homicídio doloso, tentativa de homicídio, morte por intervenção de agente do Estado ou pessoa desaparecida) têm pessoas do sexo masculino como principais vítimas, correspondendo a 83,8%. Do total, a maioria são homens negros ou pardos (68,3%) — proporção também maior do que a representação desse grupo racial na sociedade brasileira, de 55,5% (somando homens e mulheres) — entre 20 e 40 anos (61,9%).

“No contexto dos crimes relacionados às mulheres, muitos casos não são denunciados devido ao medo ou por dependência financeira. Por exemplo, no âmbito de ameaças ou violência doméstica, surge a preocupação de que as mulheres não se sintam à vontade para denunciar ou não possam fazê-lo devido ao receio pelos seus filhos. No entanto, no contexto de  lesões corporais relacionadas a acidentes de trânsito, é algo que frequentemente resulta em registro, uma vez que as pessoas tendem a elaborar boletins de ocorrência para acionar o seguro do veículo”, esclarece a pesquisadora. “Observamos que esse tipo de crime é frequentemente associado a homens brancos e de alta renda que residem em áreas como a Lagoa, um bairro nobre da cidade. A maioria dos casos registrados ocorrem nessa região pelo maior poder aquisitivo dessas pessoas, que muitas vezes possuem veículos”, complementa.

 

Engarrafamento na Lagoa Rodrigues de Freitas, na Zona Sul do Rio de Janeiro / Créditos: Gabriel de Paiva  (Agência O Globo)

 

Outros resultados identificaram que lesões contra a vítima se destacam em oito grupos, sendo os perfis mais frequentes de pessoas do sexo feminino, negras ou pardas, entre 30 e 50 anos (27,36 % da amostra) e, na maioria dos casos, localizadas em bairros de baixa renda. Destaca-se também o conjunto que inclui os bairros de Santa Cruz, Pavuna e Campinho, no qual todas as ocorrências reportadas referem-se a casos de estupro contra vítimas do sexo feminino, em sua maioria crianças e adolescentes (entre 0 e 20 anos) e predominantemente pardas (88%). Essas informações reforçam a hipótese guiadora do estudo de como crimes cometidos no município possuem relação com questões socioeconômicas presentes na cidade, sobretudo as desigualdades de gênero e racial.

 

Criminalidade e áreas segregadas

 

A frequente denúncia de crimes nas áreas mais periféricas demonstra que o fator geográfico é determinante na avaliação das ocorrências. Somado a isso, locais com renda predominantemente baixa, em regiões espacial e socialmente segregadas, ou seja, “áreas mais distantes do centro e com menores oportunidades de trabalho e de serviços”, na definição de Ventorim, são mais suscetíveis a crimes de violência com a intenção de ferir ou difamar, como a lesão corporal dolosa e ameaça de acordo com os resultados divulgados pelos pesquisadores.

O artigo investiga os fatores em comum entre as diferentes ocorrências de crimes, perfis das vítimas e onde aconteceram , apontando para certos grupos sociais, sobretudo mulheres negras e pardas, como desproporcionalmente mais suscetíveis a tipos específicos de violências nas regiões segregadas. Avaliando a criminalidade no geral, a pesquisadora reflete que diferentes estados possuem experiências próprias com o tema: “Ao analisar pesquisas realizadas em outros países, nota-se que elas não têm relação com os desafios que enfrentamos no Brasil, por exemplo. São problemas diferentes, por isso acho essa área tão interessante para compreender as nuances que podem variar de uma região do mundo para outra”.

 

Fernanda Careta Ventorim é arquiteta e urbanista, com mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense (PPGAU-UFF). Sua pesquisa acadêmica se concentrou nas relações entre diferentes aspectos que conectam crime, vítima e localização espacial. Atualmente, é mestranda em Ciência da Computação pela Universidade da Califórnia, Irvine (UCI).

Vinicius Netto é professor permanente e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (PPGAU-UFF), professor associado do Departamento de Urbanismo (TUR-UFF) e investigador principal do Centro de Investigação do Território Transportes e Ambiente da Universidade do Porto (CITTA FEUP). Possui doutorado em Advanced Architectural Studies (The Bartlett School of Graduate Studies, University College London UCL), pós-doutorado em Urban Informatics (Center for Urban Science and Progress, New York University NYU CUSP) e Desempenho Urbano (PNPD CAPES) e mestrado em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR-UFRGS). Publicou mais de 100 artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior, sendo também autor dos livros “The Social Fabric of Cities” (Routledge, 2017) e “Cidade Sociedade” (2014) e co-organizador de “A Cidade e suas Dimensões de Pesquisa” (2020), “Efeitos da Arquitetura” (2017) e “Urbanidades” (2012).

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