Mulheres na Guerra Fria: estudo mapeia organizações femininas e movimentos internacionais

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Retrato da Primeira Conferência de Mulheres da América Latina
Pesquisa da UFF aponta que as mulheres utilizaram a maternidade para reivindicar direitos políticos e sociais durante o conflito

A Guerra Fria ultrapassou as rivalidades político-ideológicas impostas pelos Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS). Diante do conflito mundial, os povos formaram redes de cooperação, com a finalidade de ser um espaço para compartilhar experiências vividas em diferentes países durante a guerra, disseminar ideias e se mobilizar em organizações. Com o objetivo de refletir sobre as relações entre gênero, feminismo, Guerra Fria e as ditaduras, a pesquisa “Mulheres brasileiras na Guerra Fria: organizações, debates, repressão e feminismos de uma perspectiva transnacional (1945-1979)” da Universidade Federal Fluminense (UFF) investiga os grupos e as mulheres que mais aparecem em documentos da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM) e da Liga Internacional de Mulheres pela Paz e Liberdade (LIMPL).

O pós-doutorando em História da UFF, Guilherme Machado Nunes, é autor da pesquisa e explica como surgiu o interesse pelo tema: “minha tese de doutorado foi um estudo biográfico sobre três mulheres brasileiras que foram as primeiras vereadoras eleitas em suas cidades. Nela, observei que as mulheres participavam de várias organizações que possuíam conexões internacionais. Assim, surgiu o interesse maior por essas entidades e pela circulação de mulheres nesse período”.

Existe um debate na historiografia feminista sobre como classificar os movimentos desse período, visto que a maioria das mulheres e organizações negavam o rótulo “feminista”. Elas associavam o termo a mulheres burguesas e liberais. Além disso, as décadas de 1940 e 1960 são observadas como momentos de “inatividade política feminina”. Contudo, esses anos foram ricos em intercâmbios transnacionais entre mulheres ativistas que contribuíram tanto para a forma quanto para o conteúdo dos direitos internacionais das mulheres. Houve maior circulação pelo mundo, mais possibilidades de diálogos, trocas culturais, políticas e de experiências entre as mulheres.

A FDIM e a LIMPL são organizações internacionais que atuaram ativamente durante a Guerra Fria. A primeira surgiu em Paris, em 1945, no Pós-Segunda Guerra Mundial. Ela acolheu mulheres socialistas, de esquerda, comunistas e/ou progressistas. Já a LIMPL, composta majoritariamente, até meados dos anos 1950, por mulheres brancas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, foi fundada em Haia, em 1915, com sede em Genebra.

No Sul Global, a FDIM é apontada como a principal organização que viabilizou a circulação de mulheres para atuação política pelo mundo. De acordo com o historiador, a Federação enfatiza a defesa da maternidade a partir dos anos 50, ação que supostamente confere importância a características biológicas “inatas” referentes à questão do cuidado. Em outras palavras, estudos apontam que defender a maternidade poderia reforçar um estereótipo de gênero. Porém, outras bibliografias mencionam que essa iniciativa foi uma estratégia. As mulheres utilizaram um aspecto aceito pela sociedade, visando à afirmação política e à atuação no espaço público, sendo esta a perspectiva abordada no trabalho do pesquisador.

O estudo de Nunes investiga mulheres de lugares distintos. Um dos artigos verifica as relações entre mulheres da América Latina e a FDIM, comparando documentos locais e nacionais com documentos da federação. O outro analisa lugares onde Julieta Battistioli (operária comunista e primeira mulher vereadora pelo partido comunista de Porto Alegre) circulou, visando identificar os embates e estratégias utilizadas para legitimar-se num ambiente exclusivamente masculino. As duas publicações apontam a politização da maternidade como instrumento de luta política e social pelos direitos das mulheres.

A maternidade como mecanismo de luta internacional pelos direitos das mulheres

As bandeiras da FDIM eram o antifascismo, o anticolonialismo, a defesa da paz, da maternidade e os direitos das mulheres trabalhadoras. Desde sua fundação, a organização possuía filiadas e delegadas em quase todos os continentes. Contudo, sua presença na América Latina cresceu ao longo dos anos 1950. Nessa década, a organização enfatiza a defesa da maternidade, os direitos das crianças e a defesa da paz. “Teremos uma série de experiências prévias de legislação, mobilização, greves exigindo creche e licença maternidade. Todas essas questões passam a ser discutidas no ambiente internacional. Ao mesmo tempo, essas mulheres tornaram-se dirigentes dessas organizações”, comenta Nunes.

Nesse momento, o anti-imperialismo aparece vinculado a discursos que ressaltam as mulheres como mães preocupadas com seus filhos. Na época, apresentar-se como mãe era uma forma de se posicionar contra as ideias divulgadas pelos países ocidentais sobre uma suposta imoralidade comunista, que tinha o intuito de destruir as crianças e as famílias. Conforme o anticomunismo se expandia no ocidente, as mulheres próximas dos ideais comunistas, ou que definitivamente eram comunistas, reforçaram a figura da mãe para obter legitimidade no debate público. Porém, mesmo reivindicando o maternalismo, muitas mulheres foram presas, perseguidas e vítimas de uma série de violências físicas. Ao mesmo tempo, há o debate sobre o imperialismo, armas nucleares e defesa da paz. Essas discussões influenciaram o surgimento de bandeiras no Brasil.


Foto: II Assembleia Nacional de Mulheres em Porto Alegre, 1953. Créditos: Jornal Momento Feminino.

Em solo brasileiro, as atividades, publicações e eventos de organizações femininas comunistas representavam parte da experiência acumulada de mulheres brasileiras e das relações geopolíticas que desenvolveram-se durante a Guerra Fria. Essas mulheres e organizações foram vigiadas e reprimidas pela polícia. A experiência parlamentar de Julieta Battistioli, primeira vereadora em Porto Alegre, simboliza o enfoque nos setores mais desfavorecidos da sociedade. Ela atuava em pedidos de calçamentos de ruas, ligação de luz em moradias populares e extensão da rede de água e esgoto. Além disso, Julieta também voltou-se para a valorização da família e da criança quando cresceram os rumores de que o Brasil enviaria tropas para lutar na Guerra da Coréia. 


Foto: Informes do Jornal Momento Feminino, de 1951. Créditos: Hemeroteca Digital Brasileira.

Finalmente, o pesquisador ressalta que a Guerra Fria não pode ser resumida em uma lista de protocolos e tratados. Além da disputa entre Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS) por zonas de influência, ocorreram outros embates pelo mundo, especialmente na América Latina. Nesse sentido, as mulheres foram importantes atores da geopolítica internacional. “O importante nessa pesquisa é revelar o nome dessas mulheres. Quem são essas mulheres que participavam ativamente das organizações e dos debates políticos desse período? Na América Latina como um todo e, no Brasil em particular, não era incomum que essas mulheres integrassem as duas organizações”, finaliza.

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Guilherme Machado Nunes é Licenciado (2013), Mestre (2016) e Doutor (2021) em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui experiência docente em diversos níveis. Atuou no Ensino Fundamental da Rede Municipal de Esteio (2016-2017) e no Instituto Federal Catarinense (IFC - Campus Videira, 2018-2020). Lecionou no Ensino Médio Técnico Integrado e no Curso Superior de Pedagogia. Integra o GT Mundos do Trabalho/Anpuh-RS e o GT História e Marxismo/Anpuh-RS. Realizou a primeira etapa do Pós-Doutorado na Universidade de Genebra (UNIGE), com bolsa de excelência da Confederação Helvética. Atualmente, é pós-doutorando na Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem experiência na área de História, atuando principalmente nos seguintes temas: Brasil Republicano, movimento operário, leis trabalhistas, comunismo, gênero, biografias e Guerra Fria.