UFF integra projeto social que ocupa os tempos livres nas escolas públicas

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Futebol sem bola. Piu-piu sem frajola. Sou eu assim sem você... No famoso hit de Claudinho e Bochecha, os músicos descreveram em versos alguns parceiros inseparáveis nas artes, nos esportes e na vida, como a própria dupla que formavam. Eles narraram como essas combinações constituíam uma unidade quase indissociável, não fazendo sentido pensar uma coisa sem a outra

Escola sem aula não é um dos versos da música, mas facilmente poderia ser encaixado nela. Apesar dessa “indissociabilidade”, o cotidiano de muitas das unidades escolares públicas brasileiras, que vêm enfrentando ao longo dos anos inúmeros problemas estruturais com a escassez de recursos, revela o contrário: nem sempre tem aula na escola. Faltam muitas coisas, desde material didático até professor.

Sensibilizada com essa situação, que fez parte de sua vida de escola pública por anos, Mariah Lima teve a ideia de desenvolver como projeto de conclusão de sua graduação em Processos Gerenciais, na UFF, uma proposta ousada e criativa de intervenção nessa realidade. Nascia assim, em 2017, o “Biblioteca de Aulas”.

O intuito era o de treinar voluntários para entrar em sala de aula propondo debates e dinâmicas variadas sempre que houvesse tempo vago. Nas palavras de Mariah, “o objetivo é transformar um problema social – o sucateamento do ensino público – em uma oportunidade de resistência. Entendemos que é possível despertar no corpo discente do ensino público o potencial necessário para que eles tenham autonomia de traçar novos rumos profissionais”, explica.

A iniciativa se transformou em realidade quando, há quatro anos, a então aluna da UFF procurou a Secretaria de Educação de Niterói para uma parceria, juntamente com o antigo voluntário e, na época, colega de curso de Processos Gerenciais, hoje parceiro na gestão estratégica e operacional do projeto Cleyson Melegari. Receptivos à proposta, o órgão encaminhou a dupla para a Escola Municipal Levi Carneiro, que naquele momento enfrentava uma baixa repentina em seu corpo docente de sete professores contratados.

Foram 45 dias de trabalho no colégio, com a ajuda de voluntários captados nas redes sociais e também nas salas de aula do Departamento de Empreendedorismo da UFF. Assim, a universidade passou a ser também integrante do projeto, não só como palco de captação de novos participantes (estudantes da universidade), como  também cedendo espaços para a realização dos treinamentos necessários. Desde 2017, Mariah informa que mais de 200 alunos da UFF, de diferentes áreas, já integraram o projeto, sendo que as de maior destaque são: Processos Gerenciais, História, Pedagogia, Ciências Sociais e Serviço Social.

Uma nova etapa foi conquistada em 2018 quando o “Biblioteca de Aulas”, já mais estruturado, se instalou na Escola Municipal Altivo César. De acordo com Mariah, 70% do corpo docente estava em vias de se aposentar, sendo rotineiras as ausências pontuais e também as licenças prolongadas dos professores. Em uma manhã na escola, em média, cada voluntário entrava de três a quatro vezes em sala de aula. Só no primeiro semestre, mais de 100 novos integrantes se filiaram à iniciativa, que impactou, até o final daquele ano, mais de mil estudantes da escola.

Os estudantes da rede pública não veem a universidade federal como um território atingível. Estamos presentes e resistindo, pois é possível transformar essa realidade - Mariah Lima

Em 2019, mais uma vitória: o projeto foi agraciado com o Prêmio de Ações Locais da Prefeitura de Niterói, sendo reconhecido como Ponto de Cultura da cidade. A premiação, que visa fortalecer práticas, atividades e projetos culturais, artísticos e de comunicação, homenageia coletivos que tenham reconhecimento da comunidade local ou do seu território de atuação. Com isso, explica a coordenadora, foi possível aperfeiçoar ainda mais a iniciativa, que passou a contar com “mediadores âncoras” - aqueles que acompanhavam os voluntários de “primeira viagem” na escola.

Já ao longo de 2020, durante a quarentena, no entanto, o projeto se remodelou e passou por muitas transformações. Segundo Mariah, com a suspensão das aulas presenciais, foi perdido o contato com os alunos e os colégios. Dessa forma, houve a urgência de reinventar o formato do “Biblioteca de Aulas”, partindo para uma atuação online. “Era um momento crítico: tivemos relatos de alunos que passavam o dia inteiro sozinhos em casa, pois a jornada de trabalho dos responsáveis em supermercados ou farmácias havia dobrado com a pandemia”, enfatiza.

Foi então que nasceram as “Jornadas Biblioteca de Aulas”: encontros temáticos e diários com uma hora de duração, via WhatsApp, no qual estudantes e mediadores voluntários trocariam experiências e estimulariam o debate num ambiente seguro e confiável de suporte. A coordenadora pontua que foram rodadas duas jornadas-piloto voltadas para os aspectos emocionais, denominadas “Jornada do Afeto”, com a proposta de conduzir conversas sobre a questão da ansiedade, como ela se manifesta, assim como sobre as expectativas em torno da volta às aulas e das angústias trazidas pelo momento de pandemia.

“Também testamos uma jornada com a temática do autoconhecimento, em que a proposta foi voltada para o planejamento pessoal, assim como ferramentas funcionais e gratuitas para serem usadas no dia a dia, e técnicas de auxílio ao estudo e à concentração. Previmos no decorrer dos encontros elementos gamificados, como desafios, tarefas e recompensas, visando incentivar a participação dos alunos, inicialmente desconfiados e desmotivados. Muitos deles investiram em suas redes sociais, onde mostraram seus talentos e interagiram com seguidores. Nosso objetivo era o de estimular e valorizar esses talentos invisíveis, compensando a ausência deixada pelo espaço escolar. A intenção era mantê-los ativos para não abandonarem o colégio, como muitos infelizmente fizeram, por falta de opção”, esclarece.

Com a volta às aulas presenciais, a meta é ocupar duas escolas e seguir expandindo para mais e mais unidades escolares. E não para por aí! Segundo Mariah, formalizar o projeto também está nos planos: “a ideia é que nossa metodologia possa um dia ser uma política pública”, enfatiza.

A idealizadora do “Biblioteca de Aulas” coleciona relatos emocionantes de voluntários. Alguns deles se surpreendem ao entrarem em sala e verem alunos estigmatizados por "não terem jeito" compartilhando ativamente opiniões e sustentando posicionamentos muito conscientes para a idade deles. São muitos os casos, explica a ex-aluna da UFF, de “potências desperdiçadas em estigma social”.

“Destaco uma Roda de Escuta Afetiva que fizemos com uma turma de nono ano. Uma estudante teve a oportunidade de denunciar à turma que sofria bullying por falar ‘com sotaque’. Ela explicou que esse sotaque, na verdade, existia por ela ter apenas 15% de audição em um dos ouvidos e expôs o quanto isso a magoava. A turma, com a mediação dos voluntários, pôde debater e esclarecer o que estava sendo exposto. Todos participaram e se envolveram”, comemora.

Aluna de Licenciatura em História na UFF e também voluntária do projeto há seis meses, Maria Eduarda de Melo foi uma das pessoas que viveu e acompanhou essa mudança por parte dos alunos, que têm se mostrado muito receptivos à iniciativa. “Passei por muitos estudantes que diziam que a matéria História era chata e se perguntavam o porquê de estudar aquilo, já que não tinha nada a ver com eles. Então comecei a planejar aulas a partir da história de vida deles, entrelaçando com ocorrências históricas que eles costumam estudar nos livros. Isso gerou um resultado que eu jamais poderia esperar”, destaca.

Entusiasmada com o Biblioteca de Aulas, Maria Eduarda conta que não queria esperar até o meio do curso para ter a experiência de entrar em sala de aula como professora. Ela ressalta que o projeto tem sido importante não só para o desenvolvimento crítico dos discentes mas como um auxílio para que possam compreender melhor a si mesmos, seus medos e desejos. “O projeto encanta muitos alunos e até mesmo funcionários da escola, que se impressionam com o engajamento dos jovens”, vibra. Já Mariah Lima vai ainda mais longe: “Os estudantes da rede pública não veem a universidade federal como um território atingível. Estamos presentes e resistindo, pois é possível transformar essa realidade”, conclui.

Como ser um voluntário: https://www.atados.com.br/ong/biblioteca-de-aulas.

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