Aula histórica de Sérgio Buarque de Holanda aos militares premia doutorando da UFF

André Furtado, aluno vencedor do Prêmio Internacional de História Intelectual da América Latina 2016. / Foto: Luísa Verçosa

O artigo “A Ressonância Subvertida: Conexões americanas e História na aula de Sérgio Buarque aos militares do Brasil” do doutorando em História da UFF André Furtado lhe garantiu o Prêmio Internacional de História Intelectual da América Latina 2016. O estudante receberá o prêmio em outubro na cidade de Quito, Equador.

O estudo de Furtado aborda um convite feito ao historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) pelos oficiais do Exército Brasileiro em 1967 – plena vigência do regime militar – para ministrar uma palestra na Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro. O artigo fará parte de sua tese de doutorado sobre a trajetória desse destacado historiador brasileiro, sob orientação da professora da UFF Giselle Martins Venâncio.

Como o próprio Furtado explica, o diferencial do trabalho se dá porque, de maneira geral, é mais comum que as pesquisas se limitem ao estudo das obras, e não abordem tanto a vida e o contexto histórico do personagem escolhido, como é o caso dessa tese. “Seria mais correto dizer que minha pesquisa não é sobre o intelectual Sérgio Buarque em si, mas por intermédio dele, analisando seu contexto histórico para melhor entender suas obras”, completa André.

Os intelectuais que manifestaram luto ao historiador se referiam ao Sérgio Buarque dos anos 60”, analisa André Furtado.

O interesse do doutorando pela obra de Buarque surgiu ainda na graduação, levando o aluno a escrever sua monografia com base na obra Raízes do Brasil (1936). O livro, inovador no que diz respeito à busca da identidade nacional, interpreta a decomposição da sociedade tradicional brasileira da época e a emergência de novas estruturas políticas e econômicas.

Na década de 60, o mesmo livro foi prefaciado pelo estudioso da literatura brasileira e estrangeira Antônio Cândido. No texto, o crítico literário criou o “tripé” da historiografia brasileira moderna, formado por Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freire, Raízes do Brasil (1936) e Formação do Brasil Contemporâneo (1942) de Caio Prado Jr. Tal fato recolocou a obra de Buarque de Holanda em evidência. Tanto que ao fazer um levantamento sobre as homenagens póstumas feitas a Buarque de Holanda, André percebeu uma constante menção ao seguinte fato: “Os intelectuais que manifestaram luto ao historiador não se referiam a qualquer edição de seu livro Raízes do Brasil, e sim à que recebeu o prefácio. Logo, eles se referiam ao Sérgio Buarque dos anos 60”.

Em 1958, Buarque de Holanda se tornara professor catedrático da Universidade de São Paulo (USP), defendendo a tese “Visão do Paraíso”, um estudo do período relacionado aos primeiros contatos realizados pelos colonizadores portugueses e espanhóis, abordando a questão do imaginário do colonizador. O trabalho logo viraria livro e, com o prestígio em alta no campo acadêmico, era requisitado com frequência para que realizasse palestras não só no país como no exterior.

Será que o Sérgio Buarque poderia recusar esse tipo de convite?", indaga Furtado.

Assim, em maio de 1967, o historiador recebeu do então comandante da Escola Superior de Guerra (ESG) um convite para que fosse ao local proferir uma conferência sobre o tema “O Homem Brasileiro”, que faria parte do ciclo de palestras “Elementos Básicos da Nacionalidade”, promovido pelo exército.

Na época, o Brasil já passava por um momento de autoritarismo. Em janeiro do mesmo ano, entrara em vigor a sexta Constituição Brasileira, que buscou legalizar e institucionalizar o regime militar. “A questão teórica aqui é: quais são os limites e possibilidades de ação individual frente a uma conjuntura autoritária? Será que o Sérgio Buarque poderia recusar esse tipo de convite? E que consequências isso poderia ter em sua vida?”, questiona Furtado.

Convite aceito, Buarque ministrou aos militares da ESG uma aula de história sobre o homem brasileiro e suas conexões americanas. Nesse contexto, o palestrante fez comparações entre a história do Brasil e a de outros países latinos, a fim de entender o homem americano. Segundo Furtado, para isso, o historiador fez uma série de paralelos entre nossa história e a de outros países, como a do Chile e México. “Há características bem diferentes, mas também há outras que nos aproximam muito desses países e essa era a tônica do discurso de Buarque de Holanda”, ressalta o doutorando.

Entre as referências históricas abordadas na conferência estavam elogios direcionados ao golpe de Estado ocorrido em 1930 – que levou Getúlio Vargas ao poder – em uma sala repleta de militares responsáveis pelo golpe de 1964. Além disso, Buarque de Holanda fez comparações de sua própria atualidade, 1967, com o Brasil Imperial. A crítica era voltada ao baixo número de votantes no país, semelhante nos dois momentos. “Durante o Império, a porcentagem de pessoas que votavam chegava a 2% no máximo e, após 64, o número também era baixo. Os militares mantinham a ideia de que os analfabetos não podiam votar, excluindo assim uma parcela significativa da população, a mesma prática da época imperial. Já a ditadura Vargas, apesar de originada de um golpe, permitiu com a promulgação da constituição de 1934, por exemplo, que as mulheres votassem, aumentando sensivelmente o número de votantes naquele período”.

Apesar de não haver um áudio, o que dificulta a compreensão exata do que aconteceu durante a palestra, existe o registro escrito, onde é possível perceber eventuais indícios de oralidade do historiador. “Utilizei a expressão ‘ressonâncias subvertidas’ no título do meu artigo sobre a aula de Buarque porque não sei exatamente o que foi dito por ele na ocasião, e nem tenho, de fato, como saber qual foi a reação dos militares. Mas acredito que eles certamente não gostaram de ouvir do palestrante uma série de exemplos históricos e elogios, mesmo que velados, a outros períodos políticos que não aquele que estava sendo vivido”, ressalta Furtado.

Prêmio Internacional de História Intelectual da América Latina

A premiação está em sua segunda edição e é promovida pelo Grupo de Trabalho da Associação Europeia de Historiadores Latino-americanos (AHILA), o corpo acadêmico “Historia y Cultura” do Instituto de Investigação Histórico-social da Universidade Veracruzana, a Academia Nacional de História do Equador e a Universidade Central do Equador. É um prêmio voltado para estudos sobre a América Latina, mas não exclusivo a pesquisadores latinos.

A cerimônia de entrega de prêmios será realizada no Congresso “La modernidad en cuestión: confluencias y divergencias entre América Latina y Europa, siglos XIX y XX”, na cidade de Quito, entre 26 e 28 de outubro de 2016. André Furtado terá seu artigo publicado no Boletín de la Academia Nacional de Historia de Ecuador.

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