Programa SOS Mulher no Huap: atendimento às vítimas de violência sexual

Logo do programa 'Mulher, viver sem violência', coordenado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

Angústia, dúvida, medo, vergonha, dores físicas e emocionais. Esses são alguns dos sentimentos que a equipe multidisciplinar do Programa de extensão SOS Mulher busca aliviar nas mulheres que chegam ao Hospital Universitário Antonio Pedro (Huap) após sofrerem algum tipo de violência, principalmente sexual. Em atividade há quase 15 anos, o SOS Mulher atende, 24 horas por dia, a mulheres que chegam ao Serviço de Obstetrícia, comumente chamado de maternidade do hospital. O setor localizado no oitavo andar do Huap funciona tanto como porta de entrada para emergências obstétricas quanto para mulheres em situação de violência sexual. Para ser atendida fora do horário em que a recepção do ambulatório esteja aberta, é preciso acessar a portaria lateral do Huap, onde as equipes são constantemente orientadas a autorizar a entrada das mulheres.

Acolhimento é a palavra de ordem do serviço, que é reconhecido como referência pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para o Leste Metropolitano (também chamado de Região Metropolitana II, que abrange municípios como São Gonçalo, Itaboraí, Rio Bonito, Maricá, Tanguá e Niterói). É um dos poucos atendimentos que se dá também por demanda espontânea, pois, desde 2008, o Huap adotou a gestão de emergência aberta, referenciada e regulada, no modelo do SUS, cujo encaminhamento se dá pela central de regulação ou pelo próprio ambulatório.

Ao acessar a recepção da emergência, a paciente relata suas queixas em uma ficha e recebe encaminhamento para a maternidade, onde há médicos ginecologistas e a equipe de enfermagem de plantão. Todo o atendimento segue as diretrizes do Ministério da Saúde na norma técnica “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”. A norma estabelece os medicamentos, exames e procedimentos de profilaxia indicados para prevenir, por exemplo, uma gravidez indesejada e doenças como HIV-Aids e outras sexualmente transmissíveis. Daí a importância de se buscar ajuda em até 72 horas, de preferência, prazo para que os coquetéis antirretrovirais possam combater rapidamente a ação do vírus. No Huap, a medicação é organizada em kits pelo setor de Farmácia do hospital, em conformidade com as normas do ministério, que são distribuídos às mulheres atendidas.

Obstetrícia é a porta de entrada para quem sofre violência sexual

A enfermeira Diva Pilotto, integrante do SOS Mulher desde a origem do programa, ressalta que além do tratamento, as usuárias encontram amparo no serviço. “É um lugar onde não necessariamente elas precisam contar a história mais uma vez. Algumas querem ser ouvidas, outras querem só o medicamento. Mas é importante dizer que elas são recebidas depois de vencer uma barreira muito complicada, que é ter coragem para entrar no hospital. É como se fosse o primeiro tempo de um longo caminho, então dizemos a cada uma elas ‘tenha tranquilidade. Você já chegou no lugar que procurava’. É um lugar onde a calmaria tem que se fazer, porque vemos coisas muito difíceis”, conta. 

É ali também que os plantonistas examinam a paciente e fazem a primeira testagem do HIV e de DST’s. Isso dá uma visão prévia sobre o quadro de saúde e o panorama de vida antes do ato de violência. Passada a etapa emergencial, a usuária é recomendada ao atendimento que ocorre às quartas-feiras, em diferentes áreas da saúde. Quando necessário, recebe o encaminhamento para o tratamento com antirretrovirais na Infectologia e para uma entrevista junto ao Serviço Social e à Psicologia e para o acompanhamento ginecológico. “Esse atendimento de quarta-feira é super importante para conscientiza-las e incentiva-las à reflexão sobre a importância de seguir o tratamento até a alta. Ficam em acompanhamento médico para definir como será esse seguimento. Os antirretrovirais têm que ser tomados durante 28 dias e podem causar efeitos colaterais desagradáveis, como diarréias e náuseas. E, depois da violência ocorrida, os testes anti-HIV e DST’s são refeitos três vezes. A paciente só recebe alta depois da terceira testagem negativa. Tudo isso é explicado lá como acontece”, afirma a assistente social Leila Guidoreni, uma das fundadoras do programa.

Segundo Leila, a equipe do Serviço Social – que é formada por ela e dois estagiários, estudantes da graduação na área – trabalha sob livre demanda. Ou seja, não há a obrigação, por parte da usuária, de passar pela assistente social cada vez que comparecer ao hospital. Porém, muitas voltam porque se forma um vínculo. “Orientamos as pacientes nas necessidades que elas possam ter – seja afastamento do trabalho ou da escola, atendimento jurídico, previdência, leis trabalhistas, benefícios e outros direitos, depende do que cada uma demandar. E muitas delas acabam vindo inclusive por questões que não tem mais a ver com a violência sofrida. Do jeito que a nossa acolhida acontece, acabam voltando pelo vínculo, e também para demonstrar que estão bem”, diz. 

A equipe do programa dá atenção especial à privacidade das pacientes. Não apenas o que é dito, como detalhes sobre os procedimentos, são mantidos em sigilo. Nesse sentido, a ginecologista Carmen Athayde, chefe do ambulatório de Ginecologia, expressa a preocupação de não manter muitos profissionais e estudantes nos locais onde as mulheres estiverem. “Em se tratando de violência, uma temática na qual elas têm dificuldade de verbalizar, com uma carga emocional muito forte, não há como colocar um monte de gente no ambulatório sentada ali para assistir. Isso se torna muito invasivo. Por mais que tenhamos o compromisso de formar, também é fundamental pensar no lado da paciente. Tem que haver um rodízio, com no máximo dois residentes ou estudantes por vez”, explica Carmen, que atualmente coordena o SOS Mulher.

Graduação em Medicina também é parceira do SOS Mulher

Em relação à formação, além de manter estagiários e residentes como parceiros do SOS Mulher, o programa firmou uma parceria com o curso de graduação em Medicina, por meio da disciplina obrigatória “Trabalho de Campo Supervisionado I (TCS I)”, ministrado pelas professoras Elizabeth Clarkson e Sonia Berger a alunos do segundo período. A disciplina tem o eixo temático “Atenção Integral à pessoa em situação de violência”. “Trabalhamos com temas ligados à saúde coletiva, às ciências humanas e sociais, em questões como direito, estudos de gênero. Não olhamos apenas para a violência sexual, mas para os diversos tipos de violência – contra crianças, adolescentes, mulheres, idosos, sob a perspectiva doméstica, sexual, institucional. É uma disciplina que une a teoria, sob o olhar da integralidade, com a prática, buscando conhecer o espaços onde ela se dá. E o SOS Mulher virou um campo de estudo. De 2013 para cá, já foram seis turmas participando”, esclarece Sonia, acrescentando que Leila e os estagiários promovem, a cada semestre, encontros com os estudantes para apresentar o serviço. Eles são divididos em pequenos grupos, acompanhados dos chamados preceptores, que na área da saúde são responsáveis por conduzir e supervisionar o desenvolvimento de internos e residentes nas diversas especialidades de um hospital.

Elizabeth Clarkson e Sonia Berger mantém ainda o projeto de pesquisa “Estudo sobre o Acolhimento a pessoas em situação de violência no Hospital Universitário Antônio Pedro”. A pesquisa busca avaliar rotinas e práticas internas da equipe envolvida na assistência e na articulação com a rede intersetorial local, aprofundando a análise sobre a situação das mulheres, especialmente das vítimas de violência sexual, no processo de adesão ao tratamento ofertado. “A partir da sensibilização pela disciplina e com o projeto, os alunos entendem qual é o trabalho do SOS Mulher e, a partir dali, formulam suas próprias questões sobre gênero e violência”, conta Elizabeth, explicando que a pesquisa foi toda construída em parceria com os alunos.

Segundo Sonia, o estudo já foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e os resultados preliminares deverão ser divulgados em março de 2017, por ocasião do mês internacional da mulher. “Fizemos um diagnóstico situacional geral no Huap, por entendermos que a questão da violência é um problema de saúde para todos os setores e pessoas atendidas ali. Mesmo que a pessoa tenha outra demanda que não seja específica sobre violência, quem está internado ou sendo atendido pode ter sofrido maus tratos, violência sexual ou outro tipo de violência. Por isso, o olhar de que quem atende e dos futuros profissionais precisa ser ampliado para identificar os casos e acolher de forma diferenciada”, pontua.

Articulação em rede é base para atendimento integral

Antes da criação do programa, o campo da violência contra a mulher não recebia uma abordagem específica no Huap, ficando a cargo de serviços que já atendiam à saúde da mulher de forma geral. De acordo com Leila Guidoreni, a criação de atendimentos especializados na área é resultado de uma intensa luta de movimentos sociais, mais especificamente de movimentos organizados de mulheres e entidades locais. “Isso fez com que o governo federal convocasse as secretarias estaduais de saúde e instituições onde já havia um polo de atendimento à saúde da mulher para uma capacitação, entre os anos 2000 e 2001. O objetivo era nos capacitar para implementar um protocolo de organização e sistematização dos atendimentos em rede”. Em 2013, foi lançado o programa federal “Mulher, Viver sem Violência”, com o  propósito de integrar e ampliar os serviços públicos já existentes voltados às mulheres em situação de violência. Dentre os objetivos, está a ampliação do atendimento adequado e humanizado às vítimas de violência sexual e o combate à impunidade dos agressores. 

Segundo a assistente social, um dos desafios hoje é a manutenção da integração dessa rede como uma política permanente. Ela conta que o programa busca maior aproximação com órgãos locais onde já há formalmente uma parceria, como o Ministério Público, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), a Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres (Codim) da Prefeitura de Niterói, e a OAB Mulher, seccional da Ordem dos Advogados do Brasil. “Dentro do atendimento em saúde, damos, no hospital, tudo o que é possível oferecer. Mas não há como dar conta, por exemplo, da questão legal. Então hoje podemos dizer que, internamente, temos um fluxo estruturado e que ninguém fica sem atendimento”. Ela afirma que estão buscando reforçar a rede de atendimento, com a sensibilização de todos os responsáveis. “Está programado um calendário de reuniões bimestrais, na Codim, para buscar a rearticulação de rede, com todas essas instituições convocadas a atuar. Nem sempre podem estar presentes ou dar uma prioridade à questão, o que depende muito do profissional que estiver à frente no atendimento. Mas não podemos parar, temos que continuar. Por isso estreitamos ao máximo que o contato com as outras instituições”.

O atendimento no Serviço Social do ambulatório do Huap para vítimas de violência doméstica ou sexual (não emergenciais) ocorre de segunda à sexta-feira, das 13h às 17h. O telefone é 2629-9073.

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