O contexto internacional e nacional dos imigrantes e refugiados

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Pesquisadoras da Universidade Federal Fluminense (UFF) falam sobre o cenário mundial e brasileiro dos diferentes grupos de deslocados voluntários ou forçados

Com o conflito no Oriente Médio que começou em outubro deste ano entre o estado de Israel e o grupo palestino Hamas, que detém o controle da Faixa de Gaza, território com cerca de 360 km2 e 2,6 milhões de habitantes, o debate sobre o deslocamento internacional ganha um novo capítulo. De acordo com o Relatório Mundial sobre Migração 2022, divulgado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), o número de migrantes mundiais passou de 84 milhões em 1970 para 281 milhões em 2020. São diferentes grupos, com culturas e crenças diversas, que migram da sua região de origem pelas mais diversas razões, que vão desde conflitos armados a tragédias ambientais ou perseguição política.

As pesquisadoras da Universidade Federal Fluminense (UFF) Mirian Alves de Souza, do Departamento de Antropologia, e Áurea Cristina Santos Dias, da Escola de Serviço Social, estudam o fluxo mundial e nacional de deslocados e destacam características e desafios enfrentados por essa população que se divide entre “refugiados” — forçados a abandonarem seus lares e cruzar fronteiras em busca de refúgio nos países próximos em razão de conflitos armados ou perseguições, segundo a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) — e “migrantes” — que decidem se deslocar em busca de melhores condições de vida, trabalho ou educação; ao contrário dos refugiados, podem continuar recebendo a proteção da sua nação de origem.

Para a professora Departamento de Antropologia, existe uma enorme diversidade entre as populações de deslocados. “Observando os dados oficiais, existe um fluxo muito mais alto de homens jovens, o que remete ao contexto de guerra. São jovens fugindo do alistamento militar obrigatório, mas existe uma presença muito significativa de mulheres também. Inclusive, a mobilidade feminina é pouco visibilizada”, afirma a docente que trabalha com deslocados pelo conflito na Síria desde 2015. Souza reforça que, no geral, são narrativas de homens jovens as mais divulgadas pela mídia, apesar de existir uma quantidade expressiva de mulheres e crianças nos processos migratórios e de deslocamento forçado.

Quanto ao cenário mundial, é notável uma grande movimentação de pessoas no Oriente Médio. A professora explica que, com a perseguição ao povo armênio durante a Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918), muitos buscaram refúgio na Síria. Apesar do país hoje ser mais reconhecido como um local de saída de refugiados, já houve momentos de migrações históricas de populações para o país por conta da pluralidade cultural da nação. Com a Guerra Civil Síria, que começou com uma série de protestos populares e progrediu para uma revolta armada em 2011, essa lógica se inverteu e a população síria, atualmente, integra uma parcela notável dos 108,4 milhões de refugiados internacionais, de acordo com a ACNUR. Conforme dados de 2023, são 6,5 milhões de deslocados forçados que buscam fugir da República Árabe da Síria.

A docente de Antropologia explica que o principal desafio é o pouco valor do passaporte. “O passaporte sírio hoje, perto do afegão, é um dos piores do ponto de vista da mobilidade. Você não consegue deixar a região de conflito de forma segura, não consegue pegar um voo. O Brasil foi um um dos poucos países que estabeleceu uma rota segura para as pessoas afetadas pelo conflito da Síria, o problema é que o país é muito distante dos grandes centros globais, e tem a questão da língua ainda”, avalia. “O Brasil é um país que até adotou uma política de portas abertas para os sírios, flexibilizou o visto de turismo ao invés de fazer as exigências regulares, mas não ofereceu nenhum tipo de política pública”.


Imigrantes africanos no centro da capital paulista / Créditos: Rovena Rosa (Agência Brasil)

Há oito anos, a professora do curso de Serviço Social da UFF, Áurea Cristina Santos Dias, dedicou-se a entender melhor as relações de deslocamento internacional no Brasil, especialmente nos grandes centros urbanos, e reforça que a questão que mais chama atenção é a condição de trabalho. Ao longo do seu doutorado, o principal grupo pesquisado foi de imigrantes saídos da África para a cidade de Niterói e conta que quase todos trabalhavam no comércio informal nas grandes cidades. As condições de moradia também seguiam a mesma lógica: “Eram quase sempre nos grandes centros ou nas periferias dessas cidades e nos espaços centrais já degradados, onde se paga menos e há sempre uma aglomeração para reduzir o custo da habitação”.

Dias também esclarece que, apesar do acesso aos serviços de saúde e de assistência serem direitos garantidos para os imigrantes, quase sempre há dificuldades para acessá-los no cotidiano. Souza complementa que muitos dos estrangeiros com quem esteve em contato durante sua pesquisa chegaram ao Brasil em um período em que a economia estava em uma situação mais estável, entre 2014 e 2015, mas com o aumento do desemprego boa parte dos recém-chegados foram afetados. “Muitos dos meus interlocutores já até saíram do Brasil”, comenta.

O que atraiu a atenção da pesquisadora de Serviço Social foi exatamente o perfil dos imigrantes de países periféricos que encontravam também no Brasil características dessas nações, sendo o mercado de trabalho restrito o principal elemento. Em terras brasileiras, assim como em outros países, os migrantes são sempre vistos como pessoas que vão competir com os trabalhadores nacionais, embora estejam, em sua maioria, em condições mais precárias de trabalho. “Acho que um exemplo recente e mobilizador foi o assassinato de Moïse, que explicitou que tipo de condições de trabalho muitos desses imigrantes estão expostos, inclusive sem receber salários por meses”, relembra ao falar da morte do congolês Moïse Kabagambe em 31 de janeiro de 2022, em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde trabalhava, após cobrar por dois dias de pagamento atrasado.

Em relação ao Brasil, a professora atualmente tem como foco entender as características atuais do processo migratório no país, historicamente uma sociedade formada a partir de processos migratórios. Ela explica que o Brasil teve a imigração como estratégia de formação da sociedade, que contou também com momentos de valorização de imigrantes europeus para o embranquecimento da população; mas, recentemente, os fluxos migratórios no país latino-americano têm adquirido outro perfil. “Minha pesquisa tem como marco temporal os anos 2000, que as estatísticas oficiais do Ministério da Justiça, que produz relatórios regulares sobre os dados da imigração e do refúgio no Brasil, e os relatórios da OIM mostram que a partir dessa data o Brasil tem recebido um público de imigrantes principalmente de países pobres, tanto vizinhos quanto de outros continentes”.

Da virada do século até os dias atuais, as nacionalidades que se destacam são congoleses, senegaleses, haitianos, cubanos e venezuelanos. Cada grupo com seus motivos particulares para buscarem um novo futuro no Brasil. O primeiro grupo com grande impacto no movimento imigratório brasileiro foram os haitianos a partir de 2010, após um terremoto que devastou o país e deixou cerca de 300 mil mortos e 1,5 milhão de pessoas desabrigadas. De 2016 a 2021, o maior fluxo de entrada de pessoas passou a ser de venezuelanos, fugindo de uma crise humanitária, econômica e política no país vizinho. Também houve uma grande chegada de sírios e afegãos especialmente em São Paulo nos últimos anos, em razão dos conflitos armados nos dois países árabes.


Imigrantes africanos no centro da capital paulista / Créditos: Rovena Rosa (Agência Brasil)

Como no cenário internacional, no Brasil a questão de gênero também ganha destaque. “Os últimos dados mostram que há um aumento significativo de mulheres, especialmente venezuelanas, e de crianças, trazendo também outros desafios como o acesso à escola”, comenta Dias. Esses dois grupos representam populações mais vulneráveis do conjunto total de deslocados, pois passam por violações específicas. A violência sexual é um exemplo de vulnerabilidade que enfrentam de maneira muito mais intensa, principalmente no trajeto de saída e de chegada até o país de acolhimento. Para as mulheres, acaba existindo também um nicho muito específico de oferta de trabalho, que é aquele ligado ao campo do cuidado: “As mulheres ficam muito mais vulneráveis ao trabalho do cuidado e ao trabalho da indústria sexual”, afirma.

Além disso, a discriminação racial também afeta essa população, assim como a idade, que pode dificultar sua adaptação aos costumes locais e o aprendizado do português. Em sua pesquisa, Dias busca entender as expectativas da vinda para o Brasil, já que geralmente o país não é o endereço final: “O Brasil não é o destino almejado em muitos casos, é o destino possível. Os destinos almejados ainda são os países da Europa e os Estados Unidos, que têm construído barreiras contra os imigrantes”. O lugar se torna um país de trânsito: os imigrantes e refugiados permanecem na nação até terem a possibilidade de ir para um dos países mais desejados, onde esperam ter melhores condições de vida, melhores salários e, portanto, melhores possibilidades de enviar dinheiro para as famílias que aguardam nos países de origem.

Outras questões incluem o acesso à educação, onde mais imigrantes estão matriculados no ensino básico, mas poucos conseguem continuar seus estudos no ensino médio e superior devido a problemas na validação de seus diplomas, já que muitos perderam documentos durante a viagem. Na UFF um fator importante é o compromisso em manter políticas inclusivas em relação às pessoas em condição de refúgio. Assim, em agosto de 2018, a universidade assinou um Termo de Parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), e tornou-se parte da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), um fórum interdisciplinar criado para promover a educação, pesquisa e extensão acadêmica voltada à população refugiada. Entre as atividades promovidas pelo CSVM-UFF, a revalidação de diplomas de refugiados na graduação é cada vez mais significativa para a universidade. A Cátedra se concretiza também através do programa de acolhimento de refugiados, solicitantes, imigrantes humanitários e apátridas da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX-UFF).

Para além das políticas públicas municipais, estaduais e federais em prol dessa população e, em contrapartida, das medidas restritivas, sobretudo nos países do norte global, a professora Áurea observa que o movimento de refugiados e imigrantes leva ao aparecimento de muitas instituições que mediam esse trajeto de saída e entrada em um novo país. Há um aspecto positivo, de órgãos mundiais e organizações da sociedade civil que organizam resgates durante as travessias e tentam auxiliar no processo de integração dos estrangeiros à nova nação, mas há também um negativo, como o surgimento de “atravessadores”, pessoas que vão lucrar com a imigração ilegal com ações ilícitas e, por vezes, violentas.

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Áurea Cristina Santos Dias é professora adjunta na Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF); Analista Judiciária / Serviço Social na Seção Judiciária da Justiça Federal do Rio de Janeiro (JFRJ). Possui graduação em Serviço Social pela Escola de Serviço Social/UFRJ (1998), mestrado em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006) e doutorado pela Faculdade de Serviço Social - UERJ (2020). Desenvolve projetos na linha de pesquisa Trabalho, Política Social e Serviço Social e na linha de pesquisa Desenvolvimento Capitalista, Estado e questão social. Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Migração Internacional e Desenvolvimento: refúgio e imigração laboral no Brasil contemporâneo; Vice-líder do Grupo de Pesquisa Estado, Sociedade, Políticas e Direitos Sociais - GESPD/PUC-Rio.

Mirian Alves de Souza é graduada em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (IG/UFF-2003), Mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF-2006), Doutorado em Antropologia (PPGA/UFF-2013), com bolsa-sanduíche na University of Western Ontario (CAPES-UWO-2011). É Professora Adjunta do Departamento de Antropologia da UFF e do Programa de Pós-graduação em Justiça e Segurança PPGJS/UFF. É pesquisadora do Núcleo de Estudos do Oriente Médio NEOM/UFF, do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos INEAC-INCT/UFF, Refugee Outreach & Research Network ROR-n e Jovem Cientista do Nosso Estado FAPERJ.

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