Livro de professora da UFF analisa relação entre religiosidade e tráfico

Entrevista

Anos de estudo de campo em favelas e periferias do Rio de Janeiro levaram a professora da UFF Christina Vital a concluir que a ascensão das igrejas pentecostais reconfigurou a relação entre religião e tráfico. As pesquisas realizadas no complexo de favelas de Acari, entre 1996 e 2009, e no morro Dona Marta, de 2005 a 2009, sinalizaram o crescimento do que a pesquisadora chama de “gramática pentecostal” – visão de mundo baseada em crenças que afetam a economia, a política, a cultura, a sociabilidade e até mesmo a criminalidade nesses espaços. A extensa análise resultou no livro “Oração de Traficante: uma etnografia”, financiado pela Faperj e lançado como fruto de sua tese de doutorado em Ciências Sociais pela Uerj. Christina é vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades e ao Departamento de Sociologia da UFF. 

A docente conta que ainda hoje frequenta Acari, seja pela curiosidade como pesquisadora de acompanhar os desdobramentos do trabalho de campo, seja pelos laços criados com os moradores. “Fiz a pesquisa lá desde a década de 1990, na iniciação científica, depois veio o mestrado, então havia períodos em que a aproximação se dava de modo mais sistemático. Mas nunca deixei de ir a Acari, também porque ali foram construídas redes de afeto, estive lá muitas vezes a passeio, para conversar com as pessoas ou fotografar. Acompanhei três décadas de presenças religiosas nas favelas de Acari e percebi como aquilo afeta os moradores e o tráfico local”.

A proximidade com Santa Marta, comunidade situada na Zona Sul do Rio, ocorreu pela intenção de estabelecer, no doutorado, uma comparação com Acari, na Zona Norte da cidade. “A intenção era de não focar apenas num espaço, mas de poder falar da cidade a partir de dois territórios, um na Zona Norte, outro na Zona Sul. De modo geral, em Acari a sensação de ser abandonado pelo poder público era maior do que na Santa Marta, porque as estruturas de oportunidade e de serviços públicos e privados fazem muita diferença na sensação de segurança ou de esquecimento, de ser atendido ou não. E essas distinções têm a ver com as diferenças da cidade como um todo”, analisa.

De acordo com Christina, apesar de serem regiões geograficamente distintas entre si, havia diversos pontos em comum, como a disputa do território e a formação de redes internas de solidariedade e proteção. “Acari é um complexo de favelas, com uma situação de tensão constante entre diversas facções e as milícias. Em Santa Marta, entre 2001 e 2002, aproximadamente, ocorreu uma tentativa de ocupação do território com o Bope. Ali era um núcleo importante de domínio do Comando Vermelho, e tinha um simbolismo histórico nesse sentido. Quando comecei a pesquisa, em 2005, o Bope não estava mais lá e exisitia uma grande atuação do tráfico, como uma cracolândia no lugar que hoje é a Praça do Cantão, com uma situação muito pesada e de degradação”, recorda. No morro Dona Marta, a autora ainda acompanhou o início do processo de ocupação da favela, a partir da instalação da primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Estado do Rio de Janeiro. Uma questão complexa, segundo ela, ora recebida com desconfiança, ora de maneira esperançosa em virtude das promessas de melhorias na localidade.

As estruturas de oportunidade e de serviços públicos e privados fazem muita diferença na sensação de ser atendido ou não. E essas distinções têm a ver com as diferenças da cidade como um todo", analisa Christina Vital.

“Em termos históricos, ‘Oração de Traficante’ marca um debate, porque foi o primeiro trabalho acadêmico que analisou como a proximidade do universo evangélico veio alterando formas de comportamento e a cultura local. Isso se deu por meio de dados empíricos, privilegiando a fala dos envolvidos, tanto dos evangélicos, quanto dos traficantes, incluindo chefes do tráfico”, ressalta a professora. Um dos elementos que, para ela, materializa essa mudança é o surgimento de pinturas com textos bíblicos nas paredes da comunidade de Acari, cuja aparição se torna gradualmente crescente, evidenciando a ascensão evangélica.

Christina defende que o papel da Antropologia e da Sociologia Urbana é estar sempre em campo acompanhando as dinâmicas na prática. “Os dados empíricos nos dão condição de trazer complexidade ao debate, de não exotizar e nem falar em ‘vitoriosos’ e ‘perdedores’ nesse jogo. Justamente porque há forças em disputa, com situações de predomínio num momento e de submissão em outro. Diferentemente da perspectiva de sociabilidade violenta, que diz que os traficantes são um domínio armado e que eles fazem o que querem, há um espaço de diálogo entre o que agrada ou desagrada os interesses das pessoas e os lugares onde eles estão operando”, conclui.

A seguir, leia a entrevista com a professora Christina Vital.

Qual é o diferencial dessa pesquisa em relação a outras que tomam a religião e as favelas como temática de estudo, na sua opinião?

Nas primeiras pesquisas sobre religião e a relação com os presidiários, falava-se muito que as conversões tinham um caráter utilitário, situacional, no qual a conversão era marcada por um interesse do preso estar numa cela mais protegida e gozar de uma moral social renovada. Quando comecei a expor a proximidade do tráfico com a religião nas periferias, alguns atores na academia questionaram: ‘que proximidade é essa?’, ‘os traficantes são de fato evangélicos?’. Mas quem falou que não são, se eles estão dizendo? Não é só uma questão de rezar a arma na boca de fumo, que aparece como algo espetacularizado. Eles vão aos cultos mais de uma vez por semana ou o fazem em suas casas, promovem cultos de ação de graças, vários deles pagam dízimo. Não podemos dizer que são falsas conversões. No livro, conto como os traficantes apresentam e justificam tal comportamento e qual a qualidade da aproximação dessas narrativas.

Na trajetória de vários traficantes que eu entrevistei, principalmente nas décadas de 1980 e 90, o presídio fazia parte dessa história de contato com a cultura pentecostal e com as redes evangélicas, em virtude da assistência que religiosos fazem no ambiente prisional é que se começou o acesso de modo mais consistente e sistemático à doutrina e aos cultos. Hoje em dia, com o fortalecimento desse caldo cultural pentecostal nas favelas, acho que o quadro mudou. As prisões deixam de ter a centralidade que tinham no processo de conversão e aproximação dessas pessoas.

A importância desse estudo é também a de trazer um dado que estava operando nas favelas e periferias. A literatura, até então, falava da proximidade do tráfico com as religiões de matriz africana de uma maneira naturalizada e linear. Se admitimos a proximidade com as religiões de matriz africana, por que temos dificuldade moral de entender essa proximidade com o cristianismo? Ela existe, então no livro buscamos entender qual a qualidade dessa aproximação, quais as tensões causadas no local. O pano de fundo são os elementos morais que dão às religiões de matriz africana um patamar de menor status em relação ao que é moralmente defensável e considerado “certo” – que seria o cristianismo –, e que serve de sustentação dessa moral superior e de um catolicismo difuso que permeia a sociedade brasileira, que aos poucos vai perdendo centralidade para o pentecostalismo nas favelas e periferias do Rio de Janeiro.

Outro marco importante dessa agenda é que em 2008 começaram a aparecer algumas matérias nos jornais sobre intolerância religiosa, enfatizando o tráfico como um ator central na questão. No momento em que tais discursos localizam o tráfico como evangélico e intolerante e isso ganha espaço na mídia, vários atores usam esse discurso para justificar algumas situações na favela, quando não é bem assim. Existem os próprios moradores e uma cultura pentecostal que demandam uma atitude do tráfico em relação aos religiosos de matriz africana e muitas vezes insuflam os traficantes. E nesse jogo de agradar à população local, eles às vezes se envolvem em diferentes contendas. Há favelas em que o tráfico tem uma colocação violenta em relação a esses templos e religiosos. Mas, por outro lado, o tráfico quer dinheiro e quer curtir. O que atrapalhar isso vai sofrer alguma represália. Agora, se não atrapalhou o ganho nem a curtição, eles não estão nem aí. Então em Acari, assim como em outros locais, há uma nuance entre o que está acontecendo de fato e um certo sensacionalismo. E esse foi o primeiro trabalho a tratar a questão de modo mais atento, com dados de situações empíricas em duas favelas do Rio de Janeiro, da Zona Norte e da Zona Sul, para falar sobre qual o caráter dessa proximidade.

Há ainda correntes na Sociologia Urbana que não tratam de valores de orientação no tráfico, porque dizem que os traficantes não têm uma ética que os organize, pelo contrário, que eles operam pela falta de alteridade, o que é chamado de sociabilidade violenta. Ao meu ver, existem algumas figuras que vão operando sob uma lógica muito própria. Mas elas não são o regular do tráfico nas favelas, pois o regular é ir tentando conjugar isso, é um poder desigual, que é o poder das armas, mas em diálogo com os interesses e com os gostos do lugar no qual eles estão. Isso é histórico e se observa desde o traficante que financiava os enterros e fazia as festas de Cosme e Damião, de Ano Novo e o Natal da favela, até com novas modalidades de agrado a essa população.

Como explicar a influência das igrejas pentecostais nessas localidades e a sua relação com o tráfico?

Existiam, nos casos estudados, traficantes com uma gramática evangélica exposta de um modo muito frouxo, e isso tinha mais uma relação com o próprio comando do que com o universo religioso. Por outro lado, havia uma série de traficantes que já tinham sido da igreja e saído, que estavam numa circulação entre o tráfico e a igreja e sua referência moral era muito formada por valores pentecostais. E pensando em toda a doutrina, o modo pentecostal de ver o mundo é, de certo modo, muito próximo à maneira pela qual os traficantes entendem o mundo. Os traficantes veem o mundo como uma luta, uma guerra, um campo de disputas de forças entre o bem e o mal, de disputa de almas e corpos. E, assim como os evangélicos, também precisam de proteção para lidar com esse mundo de guerra.

Tem ainda a questão econômica – pentecostais e neopentecostais não negam o dinheiro, porque isso é a demonstração da graça, o que dá a possibilidade de os traficantes e o seu dinheiro serem legitimados também. Vários estavam numa operação de passagem, num processo que eles chamavam de libertação do apego ao dinheiro. Alguns faziam uma programação financeira para a saída do tráfico, o que, de algum modo, ocorria de maneira mais sistemática. Com a ajuda desses religiosos, eles conseguem operar isso de modo mais eficiente para de fato terem no horizonte a saída do tráfico e uma situação financeira confortável. Há uma constante pressão para o afastamento do tráfico por parte dos familiares, muito intensa nesse sentido. E isso sempre está em jogo, a família pressionando e eles também vendo o risco e querendo sair daquela vida, porque aí sim se trata de uma reforma. Afora o fato de que são pessoas muitas vezes já formadas num ambiente evangélico, pentecostal. Então são perspectivas de mundo que se entrelaçam.

E é importante observar como mesmo algumas pessoas que não estão ligadas diretamente às igrejas acionam gramáticas, estéticas e percepções sobre o mundo que são muito informadas por um pentecostalismo difuso nessas áreas. Isso é válido tanto para pensar sobre a intolerância religiosa, quanto sobre a cultura pentecostal nas favelas e periferias, que afeta muito os marcos da sociabilidade, economia, política, criminalidade, cultura e tudo o mais que opera por ali. E só fomos vendo isso crescer.

O crescimento dos pentecostais provoca uma mudança tamanha no campo religioso local que, se por um lado os religiosos de matriz africana perdem a importância que tinham nos termos dos marcos da sociabilidade e da relação com o tráfico, também a igreja católica, que tinha um lugar muito pouco visível, tenta crescer sua importância com a chegada de um padre bastante midiático, que havia feito casamentos de celebridades, para cuidar da paróquia local.

Qual a implicação política do crescimento de políticos e bancadas evangélicas no país?

Atualmente, aumenta a legitimidade dos discursos pentecostais em favelas e periferias e na sociedade de um modo geral. Mas penso que não podemos fazer uma relação direta, por exemplo, entre a prefeitura de um bispo da Universal e o fortalecimento dos traficantes evangélicos na favela. O fortalecimento da gramática pentecostal nos ambientes midiáticos e na política, ganhando peso no Congresso Nacional e nas assembleias (legislativas), dá a condição de, nesse contexto, se firmarem ainda mais como um discurso moral potente, que “venceu”. Mas vamos vendo também que há muitas limitações a esses projetos. Não dá para pensar que o prefeito Marcelo Crivella foi eleito com os votos dos evangélicos ou apenas da Universal. Vários outros setores da sociedade se mobilizaram em torno dessa candidatura. E também vale lembrar que houve 47% de votos nulos, brancos e abstenções. Então não foi a vitória fragorosa do pentecostalismo, pois 47% estavam fora disso. Na sociedade há disputa de forças e composições entre os vários segmentos, religiosos, políticos, e mesmo nas favelas e periferias a disputa permanece.

Leia as páginas iniciais do livro “Oração de Traficante” aqui.

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