Ismênia de Lima Martins

Finalmente, preocupo-me com greves tão prolongadas. Tenho medo da munição que fornecem as ideias privacionistas, que ameaçam a universidade pública em nosso país.

Professora Emérita da UFF

‘Chegou a Ismênia da UFF’

A trajetória da professora Ismênia de Lima Martins se confunde com a própria trajetória da UFF, que este ano completa 55 anos de criação. A universidade é um elemento constitutivo de sua identidade. No circuito acadêmico do Brasil inteiro, ela é conhecida como a Ismênia da UFF e em Niterói também. “Muitas vezes, nos restaurantes, vejo as pessoas sussurrarem: chegou a Ismênia da UFF. Orgulho-me muito disto. Deixei de ser reconhecida como a neta do Grilo Paz, a filha do Dr. Lima ou a Mulher do Decnop. Afirmei-me como mulher e profissional tendo a UFF como uma espécie de sobrenome”, exulta.

Para Ismênia, a maior conquista da UFF foi ter se tornado de fato uma universidade. Sonho perseguido por antigas lideranças da União Fluminense dos Estudantes, a criação se deu a partir da união de faculdades públicas e privadas dotadas de trajetórias e práticas próprias. “Isso dificultava a promoção de um verdadeiro projeto universitário”, relembra. Em sua opinião, a conjuntura nacional, onde se destacou, particularmente, o Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, estimulava e exigia respostas das universidades federais, criadas em sua maioria a partir da década de 1960. No caso da UFF, reconhece que o primeiro avanço qualitativo ocorreu no primeiro mandato do professor José Raymundo Martins Romêo, que teve muito talento em ocupar espaços e oportunidades deixadas pela UFRJ na área do Grande Rio, bem como promover a internacionalização da UFF. E ainda: “o grande salto foi que a UFF sacudiu definitivamente qualquer poeira provinciana e vários cursos firmaram seu prestígio regionalmente e alguns, como os de Cinema e História, tornaram-se referências nacionais”.

A professora destaca também a gestão do professor Roberto Salles muito ágil na captação de recursos, na promoção de obras e no esforço de interiorização. Considera este último aspecto importantíssimo para consecução de um verdadeiro projeto universitário, uma vez que a universidade federal está comprometida, pela própria legislação que a criou, com a região em que se insere. O Estado do Rio é repleto de problemas socioeconômicos e a UFF deve ter um projeto na formação de recursos humanos e na promoção de pesquisa que atenda às especificidades regionais. “Acho que já caminhamos nesse sentido e sei que é uma preocupação do atual reitor, professor Sidney Mello, avançar nesta direção. Afinal, Niterói, antiga capital e sede da UFF, continua a polarizar grandes demandas do antigo Estado do Rio de Janeiro”, comenta.

Para destacar a importância política da UFF, relacionando com a história do Brasil e a sua trajetória na instituição, Ismênia ressalta o período da ditadura militar em que era estudante e iniciou sua atividade profissional. Segundo ela, a UFF na área das ciências humanas constituiu-se em um espaço de liberdade e resistência na área do Grande Rio. Inicialmente, era considerada uma área secundária e não sofreu os controles e a repressão, tal como aconteceu, por exemplo, na UFRJ.

“É verdade que os confrontos existiam, sobretudo, entre os estudantes, mas professores democratas autênticos, ainda que não tivessem compromisso com a esquerda, sempre estiveram prontos para defender alunos progressistas”, relembra.

Ismênia lembra os nomes de antigos professores como Luis César Bittencourt e Castro Faria, por exemplo, que aceitaram presidir uma reunião dos alunos de história contra a guerra do Vietnã, que estava ameaçada por alunos da geografia de posições contrárias. Assim, na UFF, o curso de História pôde desenvolver-se e após a criação da pós-graduação, pela professora Aidyl de Carvalho Preis, quando se iniciava a abertura, acolheu professores aposentados pelo regime militar, como Eulália Lobo e Maria Yedda Linhares, bem antes delas serem anistiadas.

Neste período, Ismênia teve grande militância ao participar da fundação da Associação de Docentes da UFF (ADUFF), sendo a primeira vice-presidente e, logo em seguida, presidente. Nesta condição, participou da liderança nacional da primeira greve de docentes, que obteve grandes conquistas. Orgulha-se de ter liderado uma greve que teve apoio integral da categoria e que, segundo ela, foi decretada num auditório lotado, “sem espaço para mais ninguém, mesmo em pé, e com três ex-reitores na primeira fila, Barreto Neto, Geraldo Cardoso e Rogério Benevento”. O movimento, comenta, teve projeção nacional, com muita repercussão social. Na ocasião, os generais receberam uma comitiva de professores e negociaram o plano de carreira dos docentes federais, até então um projeto.

Por ocasião do Jubileu de Prata da UFF, ocorrido em 1985 e presidido pela professora Aidyl de Carvalho Preis, Ismênia coordenou um projeto de pesquisa sobre vários aspectos. Para isso, reuniu colegas, como por exemplo, a professora Simoni Lahud, que tratou especificamente da relação dos niteroienses com a UFF. O resultado da pesquisa apontou que o Hospital Universitário Antonio Pedro (HUAP), no Centro, e o Centro de Artes da UFF (Ceart), localizado na Reitoria, em Icaraí, eram as duas maiores referências da população sobre a universidade. Isto se explicava pela carência da cidade em relação a esses equipamentos urbanos. O HUAP, nesta época, era uma referência nacional em trauma, mas era muito sobrecarregado com a demanda de tratamentos emergenciais de vários municípios vizinhos, o que sacrificava seu papel de hospital-escola, no qual as atividades eletivas e planejadas têm que ter seu espaço resguardado. O Ceart, por sua vez, tinha um perfil bem diferente. O teatro, por exemplo, lotava todas as quartas-feiras nos encontros do UFF Debate Brasil, que reunia público em geral, professores e alunos de escolas públicas e particulares, para debater importantes temas contemporâneos.

As lembranças de Ismênia sobre seus anos de UFF continuam e são, segundo ela, muitas e todas boas, mesmo as que a fizeram sofrer até porque, como se diz relembrando o samba, “sacudi a poeira e dei a volta por cima”. A primeira delas foi seu ingresso como docente. Naquela época, o ingresso era por convite do catedrático e aprovação departamental. Ela se distinguiu muito como aluna, assim como outros colegas. Relembra que o ex-alunos Vânia Fróes, Wagner Rocha e ela foram convidados respectivamente para as disciplinas de História Antiga, Antropologia e História do Brasil. Eles entraram e ela foi barrada no departamento. Na ocasião, muitas versões chegaram a ela e nenhuma era acadêmica. Coisas do tipo: “critica muito os professores” ou “é uma moça de família rica e não precisa trabalhar”. Enfim, com o apoio da professora Aidyl, Ismênia foi para a Universidade de São Paulo (USP) fazer pós-graduação. Dois anos depois foi aprovada na primeira seleção pública de títulos para auxiliar de ensino e permaneceu anos nesta categoria, mesmo sendo doutora, pois não abriam concurso público. Quando ocorreu foi aprovada em primeiro lugar em História do Brasil e com a maior média entre todas as disciplinas.

O movimento mais vibrante do qual participou na UFF, relembra Ismênia, foi a primeira eleição direta para Reitor. “Vínhamos da ditadura e a possibilidade de votar mobilizava e excitava a todos. Todos os bairros no entorno da UFF foram tomados pela campanha. Os bares do circuito universitário, as livrarias, isto sem falar da grande repercussão na imprensa”. De acordo com a professora, os debates entre os candidatos lotavam os auditórios. Ela despontava como favorita e no lançamento de sua campanha, na saudosa livraria Diálogo, vários políticos de grande prestígio na época, como Heloneida Studart, Márcio Moreira Alves e Marcelo Cerqueira, entre outros, compareceram. Ela foi a mais votada, mas perdeu a eleição devido à questão do coeficiente de participação das categorias. Mas a vitória com os estudantes foi inesquecível. Sozinha, Ismênia teve mais votos que os cinco outros candidatos juntos. Naquela época, em que só havia um turno, ela teria muitas chances se tivesse havido um segundo, mas “o se em história não existe!”.

No dia seguinte à apuração, Ismênia reassumia suas atividades departamentais e até hoje, apesar de aposentada, ainda trabalha na UFF ministrando aulas, não apenas na pós-graduação, mas também na graduação, o que me é permitido pela sua condição de Emérita. Além disso, coordena laboratório e projetos de pesquisas, e orienta alunos de Iniciação Científica ao Doutorado.

A professora espera que no futuro o nível de excelência alcançado por alguns cursos se estenda ao conjunto da UFF e que a universidade continue a ser um espaço de formação de recursos humanos e de produção de conhecimento comprometido com a democracia e a melhoria das condições de vida do povo fluminense. E, particularmente, neste ano em que comemora seu jubileu de ouro com a UFF, cinco anos como aluna e 45 anos como docente, ela manifesta sua intenção de continuar participando deste processo enquanto puder e for solicitada.

E ainda na opinião da professora Ismênia, a UFF de ontem e de hoje tem um aspecto importante, que precisa ser lembrado a todo o momento: a universidade é um equipamento social e como tal sofre todas as pressões e influências do meio em que se insere. Assim, é uma instituição que tem que se reinventar, permanentemente, para estar em sintonia com o seu tempo. Para ela, a UFF tem se esforçado para atingir este objetivo. “É difícil e alguns setores são mais ágeis que outros neste processo”. Desta forma, segundo ela, não interessa comparar a UFF de hoje e de outrora, mas de qualquer forma, “considero que UFF cresceu em prestígio e não apenas em número de alunos nas últimas décadas”.

“Finalmente, preocupo-me com greves tão prolongadas. Tenho medo da munição que fornecem as ideias privacionistas, que ameaçam a universidade pública em nosso país. Basta ver o que aconteceu no Chile. As paralisações deixam as universidades praticamente vazias e a falta de apoio da sociedade isolam a nossa categoria”, ressalta.